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À beira do meio-fio brotou uma rosa

30 ago
Era uma noite de enchente, dessas que instalam o caos no trânsito e na vida das pessoas. Agosto castigou com chuvas sem trégua e rios no limite máximo. BR 116 congestionada, som de buzinas, ruas alagadas. Mas Esteio não era só água. Dentro do Parque de Exposições Assis Brasil acontecia mais um dia na história da Expointer, essa jovem senhora na casa dos 36 anos que ainda se comporta como uma menina, vibrando de entusiasmo a cada visitante que chega.  Era quarta-feira, dia de muitos leilões, por todos os lados que se olhasse passavam animais premiados cujo valor atingiu cifras de arregalar os olhos. Em vários cantos as negociações aconteciam. Em um deles, um animal imponente, cheio de si, vencedor de várias provas em anos anteriores, acaba de ser arrematado por nada mais nada menos que justos, segundo o dono, 500 mil reais.
 As pessoas passavam com pressa, e nesse meio uma moça precisa se orientar para saber aonde ir, passa um homem e ela pede ajuda sobre algum lugar específico. Recebe uma recusa e um pedido de desculpas “mas o tempo está escasso”. Passa outro, a mesma coisa. Alguém logo ali, varrendo o meio-fio observava a cena. Aproximou-se meio sem jeito, vagarosamente perguntando se podia ajudar, com uma agilidade no olhar e um jeito de falar de quem se acostumou a precisar da ajuda dos outros e ter que “se virar” sozinha.
A gente vem ao mundo pra servir. diz ela satisfeita por ter indicado o que a moça precisava.
Uma Maria entre muitas outras, com nome de flor. Dona Rosa Maria de Jesus, desde o ano 2000 se adapta à rotina de um trabalho em ciclos que parece nunca ter fim. Um limpa-suja, limpa-suja constante. Dona Rosa é auxiliar de serviços gerais e conhece uma Expointer não tão prestigiada como a que conhecemos; uma feira de sujeira, desordem e lixo.
Pelas ruazinhas, entradas, quadras e qualquer que seja o espaço, está ela, varrendo e recolhendo o que sobra sem utilidade. As mãos com muitos calos não deixam dúvidas: ela trabalha das oito da manhã às oito da noite no evento. Nas suas atividades nem sempre um sorriso, como os que distribui a quem passa, é o que ela recebe de volta. Dessa forma ainda constata que o preconceito permanece e vem de quem está bem próximo: os próprios colegas.
A rotina desgasta, mas é necessária. Dona Rosa é que acorda o sol, 5 horas já está de pé, tomando o seu “pretinho” para em seguida entrar no ônibus que sai do bairro Rio Branco em Canoas até o Centro da capital. Ela é ambulante, vende roupas e todo o tipo de quinquilharia. Agora com o rigor da fiscalização, muitas vezes acaba tendo que voltar para casa sem a garantia da refeição dos dias seguintes. Por isso há 13 anos aproveita a Expointer para reforçar sua renda.
Os sinais dos seus 55 anos, quase todos marcados pelo trabalho de honestidade e esforço desde a infância pobre em Campo Bom, não enfearam os traços da filha da costureira e do pedreiro, que sonhava ser aeromoça e conhecer o mundo.
Eu ainda vou voar para a Europa! Afirma animada. Contaram para ela que lá a vida é mais fácil, mas Dona Rosa está sempre bem informada: – Mas eu sei que a crise lá tá feia, eu que não saio daqui, só para passear, já tenho minhas clientes e minha vida feita.
 Frequentou a escola só até a quinta série. Decidiu ir para Canoas quando ainda era mocinha, morar com uma tia. Mas a tia, que já não lhe dava muitas condições de vida, faleceu, e a miséria bateu à porta e a fez sair para as ruas tão logo, vendendo suas bugigangas.
Dona Rosa vive sozinha, nunca casou nem teve filhos, os pais são falecidos há muitos anos. Como costuma dizer a quem pergunta é “uma solteirona solitária”. Mas para sozinha ela não serve, sempre estão por perto os amigos e colegas, os mesmos que às vezes têm preconceito, também a tratam com a estima que uma amiga merece.
A falta de oportunidades e o cansaço do serviço não tiraram o brilho no olho de quem tem muitos planos e sonhos pela frente.
Eu quero fazer muita coisa ainda, quero conhecer lugares diferentes, visitar uns parentes que foram para o Paraná, também quero garantir minha velhice, eu não sei o dia de amanhã. – Enquanto conta suas metas para o futuro ela continua com a vassoura firme na mão fazendo seus movimentos repetitivos.
Dessa maneira Dona Rosa segue seus dias, varrendo as sujeiras da rua, limpando as calçadas e conduzindo as adversidades que surgem pelo caminho. Assim ela continua fazendo seu trabalho, com o mesmo sorriso de sempre e a disponibilidade para ajudar os outros, da rosa que não murcha no meio da poeira nem com as tempestades de agosto.
Dona Rosa Maria de Jesus
Foto: Karine Klein

Personagens das ruas

5 jun
 Conheça quem são aqueles que anonimamente contribuem para tornar São Chico um lugar melhor
 
Eles são pessoas comuns, com histórias de vida parecidas com a de muitas outras pessoas. Todos trabalhadores, que mesmo anonimamente, decidiram fazer a diferença em São Chico.  São serranos, naturais ou de coração, que optaram por deixar a acomodação de lado e fazer sua parte para uma cidade melhor. Esses personagens da vida real dão exemplos de perseverança, não desistindo fácil e provando no dia-a-dia como cada um pode fazer mais pelo lugar onde vive.
São pessoas pelas quais passamos na rua e muitas vezes não temos a dimensão do seu trabalho e do seu papel social na comunidade. Os “invisíveis” que não fazem questão de serem divulgados, mas que merecem o carinho e o respeito de cada um de nós.
Na cidade o que não faltam são pessoas que atendem esses requisitos, confira a seguir, três histórias diferentes, mas com um ponto em comum, a dedicação pelo trabalho e a certeza de melhorar São Chico.
Valdoci da Silva
Crédito: Karine Klein

O papeleiro que constrói sonhos no lixo

 

Com um sorriso no rosto e sempre muita disposição, ele percorre as ruas de São Francisco de Paula numa carroça azul puxada por Cigano, seu cavalo e companheiro de trabalho. Por onde passa, Valdoci da Silva além de materiais recicláveis, recolhe também os agradecimentos e a confiança da comunidade. Essa relação de respeito foi se construindo ao longo do tempo e hoje não são poucos os estabelecimentos que deixam suas chaves com o coletor para que ele busque os resíduos que iriam para o lixo.

Rutinéia Dutra Christofari é gerente de uma loja de departamentos no município, e convive com Valdoci há cerca de três anos. Durante todo esse tempo o papeleiro busca o que sobra das embalagens de mercadorias que chegam de caminhão até o estabelecimento. Caixas de papelão, entulhos e todo o material que iria para o lixo. Rutinéia considera Valdoci um homem digno de respeito. “Ele é muito honesto, diversas vezes já encontrou produtos esquecidos no meio dos papeis de embrulho e todas as vezes devolveu. Uma vez foi um pacote inteiro de blusas, teve outra situação que foram deixados um par de chinelos. E ele sempre devolve”, comenta.

Nessa função há oito anos, o serrano recolhe diversos detritos, como papel, ferro, eletroeletrônicos e eletrodomésticos e os encaminha para usinas de reciclagem e empresas da região, como a Gerdau. Os únicos materiais que Valdoci não recolhe são vidro, isopor, e embalagens do tipo Tetra Pak, mas segundo ele “fora isso recolho de tudo, e olha que tem cada coisa…”

Dificilmente há um final de semana ou feriado que Valdoci não esteja trabalhando, seja nas coletas na rua ou no galpão onde deposita e separa os materiais, em frente à sua casa. Ali ele pode ser encontrado até a noite, trabalhando com humildade e sempre pensando no futuro.

Quem o conhece sabe: não falta simpatia no papeleiro, e ela é resultado de seu bom humor para com a vida, mesmo que nos últimos tempos ela tenha pregado muitas peças nele.

Diagnosticado em 2009 com câncer na laringe, Valdoci obrigou-se a deixar suas atividades de lado e tratar da sua saúde. Desenganado pelos médicos, ele não se deixou abater, continuou o tratamento e enfrentou a situação. Nesse tempo contava com o apoio de sua companheira, Iara Maria, que além de dividir por 22 anos a vida e os planos com ele, dividia também o trabalho. Hoje recuperado, mas em observação, o papeleiro segue sua rotina com a mesma dedicação de sempre, porém dessa vez lamentando a falta da esposa, que o deixou há um ano, também vítima de câncer.

Em sua casa ele mostra com orgulho o fruto do seu esforço: a mobília quase completamente composta por artigos que as pessoas não quiseram mais e jogaram fora ou doaram para o desmanche, mas que de alguma forma Valdoci soube aproveitar. Diversos eletrodomésticos, roupas, calçados, relógios, toca discos, televisões, telefones, entre muitos outros artigos que teriam como destino certo o lixo, compõe sua casa. Seu carro, um Palio Weekend branco comprando com o esforço do trabalho diário, também é motivo de orgulho para o papeleiro.

Pelas paredes além de quadros, também retirados do lixo, muitas imagens de santos estão espalhadas reafirmando e aumentando cada vez mais a fé, que segundo ele, foi o que o salvou do câncer, mesmo depois de um tratamento errado.

Aos 51 anos Valdoci tira seu sustento do que as pessoas não querem mais, mesmo sem a pretensão, ele contribui para tornar a cidade mais limpa e dar o destino correto para os resíduos que se descartados de forma errada iriam prejudicar o meio ambiente.

Fabiana Kopittke
Crédito: Arquivo Pessoal

 Um amor que vem da infância

Há oito anos atrás quando veio trabalhar em São Chico, Fabiana começou a recolher animais das ruas, na maioria cães. Depois de castrá-los ela procurava por adotantes. Passaram quatro anos e a advogada, funcionária pública do TJRS, veio morar definitivamente aqui, e conversando com colegas de trabalho percebeu que era possível destinar valores de condenações criminais para a causa dos animais de rua, desde que houvesse uma associação civil criada para essa finalidade. 
Assim foi aparecendo uma pessoa aqui e outra ali que já faziam esse trabalho individualmente, elas se uniram e criaram em 2010 a Associação Civil Amigos de Rua, cujo objetivo principal é desenvolver um trabalho a longo prazo promovendo a diminuição de animais de rua através da castração.
Com a atuação da ONG no município e através das redes sociais, as voluntárias conseguiram chamar a atenção para a causa e sensibilizar as pessoas. Segundo Fabiana, que ocupa o cargo de Diretora Administrativa da entidade, hoje já é possível notar uma tomada de consciência por parte da população em geral e dos órgãos públicos e uma mudança de atitude fazendo todos se envolverem e assumirem a responsabilidade de resolver esse problema de saúde pública.
Mas nem tudo se deu de modo fácil, ainda são muitos os casos de abandono e maus tratos aos animais e ainda é preciso mostrar às pessoas que cada um deve fazer sua parte para diminuir os cães e gatos nas ruas. A ONG não possui abrigo, por isso o trabalho das voluntárias é tão importante, elas buscam quem os queira e possa de fato dar uma vida digna, com atenção para saúde e cuidados básicos para os bichinhos.
Mantida por doações particulares e de seus próprios voluntários, a ONG também conta com a colaboração do Poder Judiciário e do Ministério Público da nossa cidade. Algumas vezes também recebem apoio de empresas. Porém não possuem atualmente nenhuma verba da Prefeitura.
Desde criança Fabiana já se importava com os animais de rua e muitas vezes, quando os pais permitiam, os levava para casa. Mais tarde ajudou ONGs em Porto Alegre, mas o envolvimento mais sério se deu aqui no município e hoje, grande parte do seu tempo livre ela dedica para os afazeres da ONG.
Fabiana, aos 36 anos, considera que os animais, assim como as crianças, sãos os seres mais puros com quem podemos conviver. “Essa pureza me ensina muita coisa. O tão batido amor incondicional, que eles realmente têm, a gratidão, a capacidade de reaprender a confiar, e como coisas simples podem ser motivo de tanta alegria.”
Para a advogada, apesar da ajuda escassa, de serem poucas voluntárias – somente 7 –  e de receberem muitas críticas, tudo isso compensa quando ela vê animais antes desamparados, debilitados, que passaram por diversos tipos de sofrimento, voltarem a ser alegres, confiantes e saudáveis quando encontram um lar com adotantes que se comprometam com eles.
A ONG Amigos de Rua vem fazendo sua parte unindo as pessoas que lutavam sozinhas por um pouco de dignidade aos animais da cidade. Sempre tentando agregar mais pessoas interessadas em mudar a realidade dos animais e cobrar dos responsáveis uma mudança de atitude no nosso município.  

Athos Xavier de Brito- “Peladinho”
Crédito: Karine Klein

 O esporte como forma de driblar as dificuldades

Ele anda pelas ruas de São Chico, na maioria das vezes com uma pasta debaixo do braço.  Nela está sua história: seu passado e seu futuro. Athos, ou o “Peladinho” como é conhecido por todos, carrega sempre consigo as ideias em forma de documentos, todas organizadas e exibidas com orgulho. Seu passado representado por tudo que já desenvolveu na área cultural e esportiva, e seu futuro contido nos projetos que apresenta à comunidade.
 A causa não poderia ser mais justa, ele só quer poder dar continuidade ao seu trabalho, totalmente voluntário, que já tirou e segue tirando meninos e meninas das ruas. O que Peladinho oferece é uma opção de lazer para as crianças e os jovens, a escolinha de futebol Pelé & Pelado que atende gratuitamente meninos e meninas, na sua grande parte carentes, de 7 a15 anos.
A escolinha existe desde 1988 e foi criada por ele para tentar tirar seu filho Salomão do mundo das drogas, infelizmente não deu certo, Peladinho perdeu o filho, porém ganhou muitos outros. Até hoje passaram pela escolinha cerca de 450 crianças e adolescentes ao longo dos anos. E toda vez que reencontra algum desses meninos, hoje homens casados e com filhos, sente orgulho ao ver que contribuiu para dar um futuro mais digno a eles.
 Muitas conquistas a instituição já obteve, entre elas a de trazer por duas vezes três categorias de base do Grêmio para jogar com os alunos da Pelé & Pelado. Em 1992, trazendo ídolos como Ronaldinho Gaúcho, Tinga e Gavião e mais adiante, em 2007 também.  Outro grande orgulho de Peladinho foi preparar e treinar a categoria de 11 anos que passou duas décadas sem perder jogos.
Sempre apresentando projetos na Câmara de Vereadores, ele busca apoio do poder público, mas a ajuda na maioria das vezes vem das doações motivadas pela admiração que as pessoas sentem pelo seu projeto. Atualmente, a escolinha possui três locais para treinar, o campo do Atlético Serrano, o do DAER e outro espaço de um particular. Toda a vez que os meninos participam de campeonatos fora do município os gastos com transporte e alimentação dos jovens atletas são também custeados somente com patrocínios, o que dificulta manter o projeto.
Aos 64 anos, além de voluntário no esporte, Peladinho é poeta e compositor, premiado em diversos festivais de música na região. Sempre envolvido em projetos na área de esporte, cultura e educação, outra idealização dele foi a Banda de Latas que esteve presente em muitos eventos no município.
Segundo Peladinho, sua intenção é servir não só no esporte, mas para desenvolver a cultura na cidade, o que vem fazendo à cerca de 40 anos pela vontade de ver um futuro melhor para os jovens de São Chico.

Por: Karine Klein

O gaiteiro que toca com os dedos e com o coração

8 fev

Perfil

No ligeiro dedilhar do teclado, no ruído cadenciado que ecoa pelo ambiente e no espírito que parece se libertar do corpo ao consumar a harmonia entre o som e o ritmo… aí está Israel da Sois Sgarbi, o gaiteiro serrano que toca com os dedos e com o coração.

Aos 31 anos, a fala mansa, o jeito calmo e discreto de um típico canceriano, de longe não deixam transparecer o fervor e a emoção que emergem de seus dedos e de todo ele próprio na hora em que toca sua gaita. Como numa espécie de transe, nada mais importa, apenas transmitir o sentimento da música e as energia de suas notas.

Seu gosto pela música iniciou ainda na infância. Nasceu em Caxias do Sul, porém toda sua vida sempre esteve ligada a São Francisco de Paula, e foi na Cabanha Capão da Ferradura, no Distrito de Eletra, que teve início a paixão pelo acordeon. Na infância solitária do campo, Israel foi uma criança tranquila. Na sua imaginação inocente, desde cedo o gado e os cavalos foram suas companhias. “As coisas apenas mudaram de tamanho. Antes eu brincava com reses de plástico, hoje elas são de verdade”, conta. Aos 10 anos começou a tocar. “Estava um dia na sala da minha casa brincando com a fazendinha, os cavalos e percebi um enorme silêncio, por um instante senti um vazio por dentro, então fui até a eletrola, vi os discos que meu avô tinha e por acaso, coloquei o disco dos Irmãos Bertussi para tocar”.

Naquela ocasião, a criança jamais poderia supor que aquele gesto espontâneo para espantar a solidão mudaria para sempre sua vida.  “A partir daquele dia fui tomando gosto pela música”, recorda.

No começo: os mestres

“Eu não queria me apresentar, mas minha mãe praticamente me obrigou.”

Nunca gostou de barulho, sons estridentes, talvez por isso a identificação imediata com a gaita, de som calmo e ao mesmo tempo envolvente. E assim foram surgindo as primeiras notas e apresentações. Alguns de seus mestres, renomados na música e na tradição, deixaram seu legado para Israel. Nomes como Honeyde Bertussi, Oscar dos Reis, Paulo Siqueira, Osvaldinho do Acordeon, Luciano Maia e Adelar Bertussi, contribuíram ainda mais na formação musical e no amor pela cultura gaúcha.

Na Escola Musical Villa Lobos e na Sociedade de Cultura Musical de Caxias do Sul aos poucos as teorias e partituras foram se tornando elementos comuns do seu dia-a-dia. E num piscar de olhos, o jovem gaiteiro inicia seus shows e apresentações.

Em 1992, durante as comemorações da Semana Farroupilha, na agência do banco Banrisul, no bairro Lurdes, em Caxias do Sul, Israel teve pela primeira vez, aos 11 anos a sensação que sentiria muitas vezes mais tarde: a de apresentar seu talento para o público. “Na época eu só sabia tocar umas três músicas, três valsinhas simples, e eu não queria me apresentar, mas minha mãe insistiu tanto, praticamente me obrigou então eu tive que ir”, relembra.

A música e outras paixões

“Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus.”

 

Para Israel a música é uma missão divina, um privilégio para pouquíssimas pessoas. “Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus”. E por isso o gaiteiro pode se considerar muito abençoado. A sua primeira composição, feita aos 10 anos, integra as mais de 50 canções criadas por ele, entre letras, melodias e composições completas (letra e música).

Entre as composições está a recém vencedora do Festival Cante uma Canção para São Chico, que ocorreu durante o 17º Rodeio Interestadual de São Francisco de Paula, em dezembro do ano passado. A obra “Canto a São Chico”, foi composta por Israel quando este tinha apenas 21 anos e até então era inédita para o público. Na música, o gaiteiro homenageia as belezas do município, dando destaque para a topografia dos Campos de Cima da Serra. Um dos versos retrata bem a vida nos pampas serranos; “Em cima da serra onde eu vivo é um lugar de primeira, tem peão trabalhador e prendinha dançadeira. Tem boi gordo no campo e vaca de leite na mangueira.”

Para compor uma obra, o músico explica o que é necessário. “No processo de composição das minhas músicas eu preciso de silêncio, de estar bem comigo mesmo”. Segundo ele, a música nasce de maneira aleatória. “Vou escrevendo trechos da música, depois encaixo eles e vejo qual a melhor ordenação”. O acordeonista segue quatro vertentes musicais, a música gaúcha tradicionalista, a clássica (ou erudita), a argentina (tangos, chamamés e milongas) e a MPB. “Passeio por essas quatro vertentes e me sinto à vontade em todas elas”, conta.

O Gaiteiro ressalta o valor da obra que tantos aqui no sul executam, segundo ele, essa arte atemporal possui ritmo, harmonia e boa melodia.  E conta que sua relação com a música não é somente nutrida por amor, mas também por respeito. “Respeito muito a música, ela me dá tudo o que eu preciso. Me faz ocupar a mente, que muitas vezes pode ser minha pior inimiga, e também me faz evoluir e melhorar como pessoa”, explica.

Além da música, os cavalos são sua paixão, e a vida no campo é algo que o inspira. “O campo é um grande professor, ele te ensina a aceitar. Aceitar a vida, a morte, o inverno e o verão. Ele me ensinou a aceitar sem esbravejar e a enxergar a vida de uma maneira adulta. Como no campo, a vida é feita de safras, e eu aprendi que a gente colhe o que planta. Procuro transpor para minha vida tudo que aprendi no campo”.

O erro que virou acerto

“O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante”.

Mesmo com o talento florescendo a cada dia, a profissão musical demorou para ser aceita pelo acordeonista. “Custei para aceitar que meu destino fosse a música, mas tudo são consequências do que vivi no passado. Se hoje colho coisas boas, foi porque plantei coisas boas. Se hoje posso tocar em qualquer lugar é graças às horas e horas que me dediquei praticando”, afirma.

Aos 19 anos tudo que Israel queria era tocar sua gaita. “Nessa época minha mãe me balançou e veio com aquele discurso de que não é possível viver de música. Então saí da fazenda e fui estudar em Caxias”. O interesse maior era por veterinária, como não passou no vestibular, resolveu prestar a prova para jornalismo. “Tudo isso foi muito bom, porque o jornalismo me possibilitou aprender a expressar melhor as minhas idéias através da voz e não somente pelas notas musicais”, conta.

Como do destino não dá para fugir, eis que a música falou mais alto. “Eu sempre tive esse gancho com a arte nas mídias que trabalhei, e trabalhei em praticamente todas elas. Apresentei o programa Arte e Tradição na TV Câmara de Caxias e lá eu levava grandes gaiteiros que já eram famosos, conjuntos novos que estavam começando, conjuntos velhos, isso formava uma integração na música tradicionalista. O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante, ele agregou valor à minha arte e me fez enxergar mais o lado social, e valorizar as pessoas”.

Da música para o fogão

 “Me viro muito bem na cozinha.”

 

Poucos sabem, mas das mãos que reproduzem as canções, outras habilidades também vão surgindo. Nas horas vagas a cozinha é o lugar com que o gaiteiro mais se identifica. “Gosto muito de cozinhar, não só de fazer aquela “comida de sempre”, gosto de criar pratos elaborados, molhos especiais. Me viro muito bem na cozinha”, revela.

Quando não está praticando sua música nem na lida com os cavalos, os filmes também detém a atenção de Israel. Filmes de época, de ação e alguns nacionais que retratam a saga gaúcha são seus preferidos.

As influências

“Todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim”.

 

Seus gostos e influências musicais são bastante variados. Vão desde Paulito Barbosa, Soledad, Irmãos Bertussi até Paula Fernandes, música country, moda de viola, sertanejo de raiz, samba de raiz e música clássica. Entre suas canções prediletas está o Cancioneiro das Coxilhas, dos Irmãos Bertussi. “Essa música marcou minha vida”, diz.

Muitos são seus ídolos, entre eles admira Luiz Carlos Borges, diretor do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. “Em termos de música, pois ele toca em vários lugares, qualquer estilo, e também como pessoa, procuro me espelhar nele”, acrescenta.

Até hoje muitos foram seus shows, bailes e apresentações. Israel passou por diversos lugares e todos representam muito para ele. “Gostei muito de ter tocado no Paiol, em Caxias do Sul, no Teatro Guaíra, em Curitiba, junto com Osvaldinho do Acordeon, Renata Sbrigui, Frank Marroco, Paolo Gandolfi e Marco Patarime. Mas todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim, desde um galpão de chão batido até um lugar como o Teatro Guaíra”, afirma.

Os planos e os medos

“Eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro”.

 

Segundo Israel, seu maior sonho é alcançar a evolução sem perder a tradição. Para este ano de 2012, o gaiteiro afirma, “Quero tocar muito, viver minha música intensamente”. E confessa, “eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro. Como já disse, o futuro é o que eu planto hoje; acho que estou plantando coisa boa”.

Apenas uma coisa lhe causa temor. “Tenho muito medo da ignorância da humanidade, de como as pessoas podem ser más e cruéis por isso”, comenta.

A gratidão e o cuidado com os que ama

“Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

 

A sensibilidade ultrapassa os limites musicais, ao conhecer melhor esse gaiteiro de jeito discreto e introspectivo ele vai aos poucos revelando o amor e a gratidão por quem lhe é importante. “Amo muito minha família, meus bichos, minha música. Cuido das pessoas que fizeram muito por mim. Para os meus avós procuro fazer um pouquinho, isso é o mínimo que posso fazer por quem me tornou o que sou hoje. Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

 

O professor

“Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles”.

O acordeonista é também professor. Ensina várias pessoas, de várias idades, homens, mulheres, jovens e crianças. Na relação que mantém com seus alunos, ele procura deixá-los à vontade. “Tive um professor que me apresentou o mundo da gaita, as partituras, que me fez ainda mais tomar gosto pela música, mas seu sistema era quase um regime militar”, brinca. No âmbito de ensino-aprendizado, Israel deixa claro qual é o seu papel. “Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles, eles que saberão até onde querem ir”.

Muitos de seus alunos também o acompanham na Associação de Acordeonistas e Gaiteiros de São Francisco de Paula e dos Campos de Cima da Serra, que completará seu primeiro aniversário em abril de 2012. “A tradição dos gaiteiros de cima da serra é única, ímpar, incomparável. Não é por acaso que daqui saíram grandes nomes da música tradicionalista. Até hoje vemos muitos talentos escondidos, não é fácil encontrar tanta gente que toque um repertório tão variado num local tão pequeno, por isso surgiu a Associação”, explica.

O Grande Arquiteto do Universo

“Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo”.

A espiritualidade é algo muito presente na vida do músico. De batismo católico, mas com muitas pinceladas do espiritismo, ele vai criando a sua própria doutrina. “Acredito que exista o grande Arquiteto do Universo, que criou e planeja as coisas. Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo, de que as pessoas que estão na nossa vida têm um motivo de estar, mas penso que é preciso viver o hoje, o agora da melhor maneira possível, vai saber se existe mesmo o outro lado, ou outras vidas, afinal, ninguém voltou ainda para contar”, brinca.

As Anitas de Israel

 “Ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade”.

-“Já terminou? Ah, eu tinha preparado uma resposta na ponta da língua se tu fosse me perguntar do amor.” (risos)

-“Então tá, e o amor Israel?”

Apesar do tom de graça, o acordeonista leva o assunto muito a sério e conta pausadamente, dando ênfase a cada nome. “Ana-Maria-de-Jesus-Ribeiro, a Anita Garibaldi. Ela é aquela mulher que vai pra guerra junto contigo, que cuida dos ferimentos dos soldados, ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade. Ela constrói as coisas contigo, cuida dos filhos, é uma esposa dedicada, é uma amiga, enfrenta todos os problemas junto contigo e ainda assim não perde a ternura e a delicadeza”.

-“E essa Anita já apareceu na tua vida?”

– “Bom, na verdade várias Anitas passaram pela minha vida, cada uma com algumas dessas características, mas não eram Anitas completas. Sou muito cuidadoso… essa Anita de verdade eu não encontrei ainda”.

15/Fev/2012

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Serendipiando

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