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Vídeo

Lauro Quadros – uma vida no rádio

26 mar

Perfil televisivo do radialista gaúcho Lauro Quadros.
Produzido na disciplina de Telejornalismo II do curso de jornalismo da Unisinos (São Leopoldo-RS)
Novembro de 2014.

 

A solidão fez-se miragem

5 jan
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Foto gentilmente cedida por Silvio Kronbauer©

A cena quase sempre é a mesma, ela acompanha os visitantes até as portas de madeira de demolição, envelhecidas pela ação do tempo. Na despedida, profere a frase que repete pelo menos uma dezena de vezes ao longo de um dia: “digam por aí que São Chico tem livraria!”. Ela fala sem conseguir disfarçar o orgulho na voz, mas ao mesmo tempo sem deixar de lado a simplicidade de quem recebe um velho conhecido em casa. Os clientes que se vão garantem a ela que dirão isso e muito mais, e que voltarão. E sempre voltam. E trazem consigo outros. Essas mesmas palavras são ditas para as próximas famílias, os amigos, os apaixonados, ou seja lá quem passe pelo número 811 da Avenida Júlio de Castilhos.

O prédio tem 2.956 metros quadrados, três andares e oito ambientes diferentes, incluindo a seção infantil, o sebo, o espaço adulto, a Casa de Chá, o pátio interno e um salão de eventos, cuja fachada é a réplica do primeiro banco do município de São Francisco de Paula, datado de 1918, e que tem em seu interior um minimuseu, com fotos antigas da cidade.  Para o casal que projetou a obra, Ricardo Segatti, e Cláudia Tubino Fregapani, foi como materializar o sonho de uma pessoa. “Ouvimos as características que ela queria, discutimos e hoje está aí… um lugar incrível. Cada vez que entramos na livraria, nos apaixonamos novamente por ela. Não tem como ser diferente”, comentam. O acervo é de mais de 20 mil obras, há também os objetos de decoração, bazar e brinquedos (na seção infantil).  A construção por si só já entrega o nome do local. Bem no centro de um município com pouco mais de 20 mil habitantes, existe uma Miragem. Uma Miragem no meio do nada, uma livraria que virou referência em todo o Brasil.

A arquitetura da construção preserva o antigo sem abrir mão do moderno. Para quem enxerga da rua, grandes janelas se abrem das paredes verdes. No alto, sobre as portas da entrada, fica um enorme relógio redondo, orientando a passagem do tempo para os serranos. Lá dentro, todos os objetos parece que se harmonizam, criando uma composição agradável aos olhos. Por entre as estantes ficam também quadros, esculturas, objetos de decoração, CDs, mas o personagem principal é sempre ele – o livro.

 Logo ao entrar é possível sentir o cheiro, ah… o cheiro dos livros! Aquele odor de histórias traz um mundo pronto para ser decifrado, através do nariz.  O aconchego dos espaços, misturado à música ambiente, geralmente erudita ou canto gregoriano, se unem à meia-luz do lugar e tornam o ambiente irresistível.

Ela passa os dias por ali, em meio aos livros e nessa atmosfera quase surreal, ajudando suas cinco funcionárias a receberem os que chegam admirados, alguns pasmados, pela beleza do lugar e a circunstância de encontrá-lo numa cidade tão pequena e aparentemente sem atrativos culturais. Uns dizem que o cenário é digno da Europa, outros afirmam que o espaço deveria ter sido construído em Porto Alegre ou em qualquer outra cidade que atraísse mais turistas. Por que aqui? Por que em São Francisco de Paula? Ela responde convicta: “Eu tenho uma dívida com esse lugar, tudo que aprendi veio daqui”.

Os livros a acompanham desde sua infância. Luciana Olga Soares, 68 anos, encontrou a paz que buscava e um sentido para sua vida quando inaugurou a Miragem, em 4 de outubro de 2000. A data, não por acaso, caiu no Dia Mundial dos Animais e no aniversário de sua avó paterna, Rosalina de Andrade Soares, segundo ela talvez a pessoa de sua família que mais a amou. Na época a Miragem ocupava apenas duas salinhas, uma na entrada e a outra nos fundos de uma galeria situada bem no meio da avenida principal da cidade. No espaço ao fundo dessa galeria ficava a Miragem Infantil, ambiente dedicado os pequenos, mas que deleitava até os grandes.  Em 15 de março de 2008, o novo espaço foi inaugurado, no dia do aniversário de Luciana, que vibrou por ficar em segundo plano a comemoração do seu nascimento. Difícil explicar para alguém que não conhece o que é essa livraria. A Miragem é mais que um espaço físico, é um acervo da alma. “Estou mostrando tudo aquilo que tinha dentro de mim e ninguém nunca acreditou”, admite a proprietária.

Essa senhora que idealizou tudo durante anos é a responsável pela livraria ser o que é hoje. Na seção infantil, um mundo à parte para os pequenos, um dos locais mais admirado da casa, não entra nenhum livro ou brinquedo em que apareçam imagens de animais aprisionados ou maltratados e, seguidamente, fornecedores desse segmento, desavisados, recebem a recusa de seus produtos, porque Luciana escolhe cada livro com muito cuidado. Ela diz que a medida é para garantir que as crianças possam ter contato somente com o que considera ser o correto, que não se incentive os maus-tratos aos animais. “Não posso permitir isso, eu estaria sendo cúmplice dessa escolha”. No restante da livraria, a proprietária entende que não pode ter controle. “Os adultos sabem o que estão fazendo, eu não sou responsável por eles, mas as crianças eu tenho o dever de contribuir com a educação delas.”

Luciana é uma senhora de estatura média, pele pálida, cabelos curtos e grisalhos, o nariz fino sustenta os óculos de armação redonda. E é através das lentes deles que um olhar profundo parece buscar o interior da pessoa com quem conversa. É muito observadora. Veste-se de maneira discreta, detesta cores berrantes. Sempre com um colete de malha bege, que traz o nome da livraria bordado em marrom, calças jeans e uma bolsa a tiracolo, também marrom, ela percorre as ruas da cidade acompanhada de Pretinha, uma vira-lata adotada e assustada pelo tratamento do passado, que ganhou o paraíso quando foi recolhida por Luciana há cerca de 10 meses. Pretinha é só uma representante, a “adoradinha da dona”, como a livreira costuma dizer. Na sua casa no campo, na localidade do Faxinal, RS 235, a 18 km do centro da cidade, a livreira tem outros 32 cachorros, todos adotados.

A criança que não era esperada

Terceira filha do casal Sylvio de Andrade Soares e Ondina Soares, a “Dona Onda”, como era conhecida por todos, Luciana cresceu em uma família abastada, com muitas colônias de campo em São Francisco de Paula. A mãe de Luciana sofria diversos abortos espontâneos, e talvez por isso sentisse a necessidade de ter os filhos que a natureza não lhe permitia. Adotaram primeiro Neusa Mary Pacheco (que anos depois daria nome a uma escola estadual de Canela), quando esta tinha cerca de três anos e a mãe biológica da criança, irmã mais velha de Dona Onda, ficou doente. Depois adotaram Nize de Lourdes Pacheco, irmã de Neusa, quando tinha apenas três meses. Criaram ambas como filhas. Porém, o que ninguém imaginava um dia aconteceu: Ondina conseguiu manter uma gravidez até o final e, em 15 de março de 1945, às 10h30min, no quarto 27 do Hospital Beneficência Portuguesa, em Porto Alegre, nasceu pesando 1.750 kg o bebê que o casal achava que não teria mais.

A devoção aos animais

Nas primeiras horas de vida Luciana era muito fraca. Mesmo depois de deixar o hospital, ainda era um bebê com saúde debilitada. Não mamou uma gota do leite da mãe, vomitava tudo que lhe ofereciam. Com três meses de vida não pesava dois quilos, então o pai, aflito, pegou a vaca mais sadia que tinha no rebanho, tratou-a bem e deixou-a ao dispor da filha, que sobreviveu graças ao alimento fornecido pelo animal. Talvez aí tenha iniciado a profunda relação com os animais e o campo. Tal relação seria confirmada tempos depois, quando, aos dois anos Luciana sumiu da vista dos pais e foi encontrada no chiqueiro, dormindo junto dos leitões.

Hoje, há 15 anos Luciana não come carne. Já tinha vontade de largar o hábito quando, certa vez, visitou uma família que tinha moças lindas e muito saudáveis. Eram vegetarianas. A partir daí ela entendeu que não teria deficiência de nenhum nutriente se seguisse uma dieta balanceada, mesmo sem comer a proteína animal. Desde que tornou-se vegetariana, percebeu que sempre olhava o gado e desviava o olhar. A partir de então, conseguiu fixar os olhos nas vacas, sem desviar. Trocou o prazer de comer carne pelo prazer da alma leve.

O que a faz feliz agora é a tranquilidade que traz consigo mesma, muito diferente da Luciana do passado. Essa calma muito se deve ao sentimento de saber que nunca foi ruim para quem foi bom para ela. Orgulha-se em contar nunca maltratou os animais, seres indefesos.

Os irmãos

Depois do nascimento de Luciana, vieram mais dois filhos adotivos: Reni Guilherme Pereira, que era filho de uma empregada da casa, a Glória, e foi criado pelos patrões como se fosse filho deles – por mais que  isso desse margem a muitos comentários de que o menino era filho de Sylvio, tempos depois ficou provado que não e o já adulto, Guilherme passou a frequentar a casa do pai, um antigo namorado de sua mãe; e, por último, Silvana Pacheco Manique, filha de Neusa e Theodolindo Manique, que após o casamento seguiram morando no casarão do Faxinal com a criança.

Neusa morreu de repente, aos 34 anos adoeceu e em poucos dias o Paratifo, uma doença infecciosa, afetou seu coração. Silvana tinha três anos na época, então Luciana, com 18 anos, passava os dias a consolar a mãe, que quase enlouqueceu, e ajudava a criar a irmã adotiva, o que a distraiu da própria dor pela ausência da amizade da irmã mais velha.

Guilherme faleceu aos 46 anos, vítima de um acidente de carro há cerca de oito anos, na rodovia que liga os municípios de Cambará do Sul e São Francisco de Paula. Luciana tinha por ele um sentimento de carinho e cumplicidade. “Ele tinha um coração de ouro, mas nunca conseguia mostrar tudo de bom que tinha dentro dele”, comenta. Guilherme era alcoólatra, quando bebia fazia sofrer toda a família. “Ele me amava e ao beber queria me matar”, lembra entristecida.

Com as duas irmãs vivas a relação é bem diferente. Com Nize, que hoje tem 72 anos, desde o início a convivência foi conflituosa e segue até hoje, nem Luciana nem ninguém da família tem notícias dela. A última informação que tiveram foi que deixou o município de Canela para morar em Porto Alegre. Nize nunca pisou na Miragem, não sabem seu telefone, nem seu endereço, sabem apenas que casou-se, mas não com quem.  Ela era uma jovem linda que todos queriam por perto. Luciana, ao contrário, se sentia feia e desajeitada. Com a morte do pai, retornou de Porto Alegre, depois de viver anos por lá atuando como professora. “Depois que morreu o pai de Luciana, que era quem equilibrava as coisas, ficou um ambiente pesado”, recorda a irmã, Silvana.

As pessoas diziam para Nize que quando ela voltasse lhe tomaria o lugar. Havia também a preocupação de ter que dividir o que antes era só dela. Quando Luciana nasceu, Neusa e Nize já estavam lá. Era ela que não devia estar. Sempre foi esse o sentimento que guardou consigo. Com Silvana a relação sempre foi muito boa. “Na minha infância a Luciana foi um pouco ausente porque vivia em Porto alegre ainda, mas desde quando voltou sempre nos demos muito bem”.

Uma relação difícil

A mãe, Dona Onda, segundo conta a livreira, tinha uma carência afetiva muito grande, com a qual não soube lidar e que acabou interferindo no trato com a única filha biológica. A relação das duas sempre foi muito difícil, desde sua infância se sentiu excluída. Para a filha, Onda não sabia transmitir afeto, porém com as outras pessoas era agradabilíssima, muito sociável. “A Luciana sempre se sentiu rejeitada, justo ela que era a única filha biológica deles”, comenta a irmã, Silvana.

Talvez o maior acerto da vida de Luciana tenha sido quando aos 28 ou 29 anos teve uma conversa definitiva com a mãe, disse tudo o que pensava, como se sentia. A partir daí o diálogo entre as duas melhorou bastante.

Ondina era uma mulher bela, foi Miss Taquara em 1925. Apesar disso, sentia muito nunca ter podido estudar. As irmãs de Luciana também eram lindas e como a mãe, extremamente agradáveis. Chamavam a atenção por onde fossem, pela beleza, simpatia e educação. Até hoje comenta-se que Nize era a jovem mais atraente da cidade na época.

Como não era bonita, e tão tímida que não atraía os olhares pelo carisma, Luciana decidiu buscar a atenção dos outros para si usando roupas esfarrapadas, remendadas, e tendo atitudes que para época escandalizavam os demais.

Sentia-se muito só. Sofria. Comparada às irmãs, diziam-lhe que não sabia fazer nada direito. Acostumada a nunca receber atenção, Luciana ficou arredia. “O que era pra ela, ela não entendia como sendo para ela”, comenta Silvana. Segundo Luciana, talvez a única coisa que fazia e a família gostava, era tocar gaita ponto (ou botoneira, como é conhecida em outras regiões). Tinha um repertório curto, cerca de 30 músicas, que aprendeu com um professor chamado Fabian, e tocava para os de casa, mas logo vinham as comparações e Luciana se sentia desanimada.

O silêncio, as paisagens cobertas do verde do campo, as noites poéticas, o vento, o fogo da lareira, a luz do lampião e das velas, durante os quatro anos que não tiveram energia elétrica no Faxinal, foram muito importantes para Luciana. “Esses fatores me empurraram para a introspecção, criaram os valores que me sustentam até hoje”, conta.  Passou desde cedo a escrever. E essa foi uma grande ajuda para si mesma, pois para escrever ela necessitava organizar as coisas que sentia, saindo de dentro pra fora. Conseguia então exteriorizar as angústias e devaneios. Aos 11 anos fez seu primeiro escrito.

Apesar de para as pessoas próximas, sentir que não tinha préstimo nenhum, Luciana conta que poderia ter sido bailarina de tango, jóquei ou caminhoneira. Dançava com suavidade, montava cavalos e dirigia muito bem. Tinha talento para todas essas funções, mas os de casa sempre a viam por meio dos seus defeitos e das habilidades que lhe faltavam. Acostumou-se a ser criticada, zombada, excluída.

Uma criança triste, perdida na própria imaginação

Certa vez, recorda com o olhar distante, quando estava na segunda série, a professora ensaiava uma apresentação de dança. No primeiro passo que Luciana deu a mestre enxotou-a do palco dizendo que o coleguinha que dançava com ela não estava querendo mais porque ela era muito desajeitada. “Eu nunca esqueci essas palavras”, confessa.

Outra situação, desta vez no ano seguinte, quando estudava na terceira série. Estava numa aula de leitura, a professora havia pedido que os alunos escrevessem uma pequena história na aula anterior. Todos as fizeram estruturadas de acordo com a capacidade de uma criança de oito ou nove anos, porém Luciana escreveu um texto com sentido, início, meio e fim, respeitando as margens e com marcações de parágrafos e travessões. Ao se dar conta disso a professora, espantada, comentou sussurrando com uma colega de profissão o quão adiantada a menina estava, ela nem sequer havia ensinado essas regras ainda. As duas professoras, admiradas, seguiram conversando aos cochichos, porém, nenhuma delas elogiou ou simplesmente falou sobre o fato em voz alta para a classe. “Eu era uma criança, precisava de um elogio. Eu precisava que alguém dissesse que eu sabia fazer alguma coisa, mas nada foi dito”, lembra.

Lia muito desde pequena, lia compulsivamente. Talvez por incentivo dos pais, que lhe presenteavam com livros, e, principalmente pelo exemplo de Sylvio, que mesmo não tendo instrução formal, lia todas as noites. Era um homem aberto, não tinha preconceitos, numa época em que ser preconceituoso era socialmente aceitável. Sylvio era muito apaixonado pela mãe de Luciana. A filha biológica tinha uma profunda admiração pelo pai, com quem conseguia uma relação melhor. A estima pelos tempos de outrora, que Luciana carrega até hoje, vem dele. Sempre dizia que pessoas realmente inteligentes cultuavam o passado. Luciana conta, saudosa, que seu Sylvio, pessoa lá de fora, adaptado aos costumes da terra, mas com uma percepção de mundo muito ampla, também falava que “tradicionalismo não é grossura, é refinamento.”

Luciana cresceu em meio às sombras de antigamente. Nove anos antes de nascer, uma tia, Eunice Soares, na época com 24 anos, suicidou-se com um tiro no peito, em seu quarto, no casarão da família. Ela era uma jovem moderna para época, pilotava aviões, tinha uma personalidade forte, incomum para as meninas daquele tempo. Luciana cresceu ouvindo o quanto se parecia com a tia. Dessa forma, inconscientemente tentava assumir a personalidade da morta, numa tentativa de ser aceita. Sentia muita falta de ar, tentava preencher seu vazio buscando ser quem não era. Foi então que seus pais perceberam que a menina precisava de ajuda e levaram a filha num psicólogo.

Num culto à memória, até hoje o quarto da tia está intacto na casa de Luciana, que está sendo restaurada para voltar a ser exatamente como antes.

Assim, desde criança Luciana transferiu seus conflitos para a leitura. Numa noite em que dormia com a avó Rosalina, a qual, diferentemente da família, nutria muito afeto pela neta, a menina lia um livrinho de histórias infantis pela milésima vez, quando a avó ordenou que apagasse o lampião. Ela insistiu para que não, porém era tarde e a idosa mesmo apagou a luz. Sem se abalar, Luciana continuou “lendo” a história, virando página por página, no tempo certo da narrativa, no escuro, porque sabia a história de cor.

Os tropeços da adolescência

Aos 17 anos, Luciana era uma jovem triste, carregada de rancores. Um dia caminhava pela rua e simplesmente seus músculos começaram a se contorcer. Ela ficou torta, não conseguia endireitar a postura. Alguns que passavam tentaram ajudar, mas de nada adiantou.  Os pais a levaram para o hospital e o único tratamento que recebeu foi ficar literalmente estendida em uma cama, ouvindo música erudita. Só.

Anos mais tarde, em uma consulta com um psicólogo ela soube que o que teve naquela ocasião foi uma Neurose de Conversão, espécie de transtorno dissociativo provocado, entre outros fatores, por intenso estresse. O médico disse ser um milagre uma pessoa se curar de um trauma como esse sem um tratamento profundo e específico.

Tentando buscar uma forma para se manter sozinha, sem depender dos pais, ainda com 17 anos Luciana foi até a cidade pedir emprego. Chegou a um restaurante e explicou ao dono que gostaria de trabalhar e podia ser em qualquer função, poderia lavar a louça. O homem olhou-a de cima a baixo e disse com desprezo: “Tu não acha vergonhoso tirar o lugar de quem precisa?”. “Eu fiquei sem chão”, admite. Naquele momento, Luciana entendeu que não conseguiria emprego simplesmente porque vinha de uma família rica, e para os outros seria um despropósito ocupar uma vaga que alguém mais necessitado podia aproveitar. Para ela o maior erro de sua vida foi não ter discutido com o dono do restaurante e tê-lo convencido do quão necessitada estava daquele trabalho e então deixar a cidade para trabalhar em outro local.

Teve o primeiro emprego somente aos 27 anos. Acostumada a ouvir de todos que “não prestava pra nada”, formou-se em história pela PUC, em 1970, e afirma: “aprendi muito pouco com a faculdade. Nela basta ter uma boa memória para decorar tudo. Aprendizado mesmo eu tive na vida”. Logo após formar-se, retornou a São Chico para ser professora de história da 5ª e 6ª séries do Primário (equivalente ao ensino fundamental), no antigo colégio de freiras, onde hoje funciona o Colégio Estadual José de Alencar, mais conhecido por “Normal”. Foi professora quatro anos no Grupo José de Alencar, depois um ano em Flores da Cunha, 15 anos em Porto Alegre e retornou para a José de Alencar por mais dois anos. Talvez aí Luciana tenha começado a entender que sim, sabia fazer – e fazia bem – alguma coisa.

A mestre

Os alunos eram apaixonados por ela. Era uma professora inovadora, convidava os estudantes a se interessarem pelo conteúdo através de tarefas diferenciadas. Levava teatro para dentro da sala de aula. Respeitava o que cada aluno tinha de diferente e mostrava essas diferenças como algo positivo na composição da classe. Conseguia chegar à alma deles, ajudava-os a se autoconhecerem e se descobrirem. “Ela era uma professora diferente do convencional”, conta Laura Rosana Martins, 52 anos, relações públicas, aluna de Luciana entre a sexta e a oitava série, na década de 70.

Um dos episódios mais marcantes para Laura, que na época era uma adolescente, foi quando a professora de História conseguiu o espaço do Fórum de São Francisco de Paula para fazer um júri simulado com uma encenação do Sistema Feudal. “Para a época aquilo foi incrível! Quebrou barreiras, a cidade inteira comentava. Nenhum outro professor havia tentado algo parecido.” A ex-aluna, que hoje reside em Porto Alegre, relembra com carinho as histórias com a professora. “Ela era o máximo!”, enfatiza. Luciana abria a porta de sua casa e de sua privacidade para os alunos, que a tinham como uma amiga. “Ela era o guru da turma”, lembra. Carinho e respeito eram as características de suas aulas. “Tudo isso me marcou muito até hoje”, afirma a RP.

Silvana, a irmã mais nova, hoje com 51 anos, também passou pela experiência de ser aluna de Luciana, na sétima e oitava séries do Primário, e recorda que a irmã era inovadora na sala de aula. “Ela levava atividades diferentes, dava aulas de uma maneira incomum para época”, recorda.

A fuga

Para fugir dos conflitos internos e do ambiente familiar, quando chegavam as férias, era só o tempo de arrumar a mala e colocar o pé na estrada. Com essa fuga dos problemas do convívio na casa, Luciana conheceu todos os estados do Brasil, exceto Pará e Amazonas, parte da Europa, quase toda a América do Sul, México, Panamá e muitos outros lugares, dando preferência para destinos históricos.

Sempre quando voltava trazia na bagagem uma louca saudade do campo, do casarão, dos animais. Se tivesse novamente que escolher um lugar pra viver, seria ali, naquela paisagem. Pensava isso todas as vezes que chegava de viagem.

Os espelhos

Nunca casou. Não teve filhos. É uma senhora solitária e cheia de recordações. Umas boas, outras doídas. Quando jovem não pensava em se casar, exceto quando um grande amor a fez ter a certeza de que queria ficar ao lado dele para sempre. Para ela, no casamento a mulher desempenhava o papel de mãe do marido, e isso ela não suportava nem pensar na ideia. Nunca mudou de opinião.

Luciana jamais pensou também em ser mãe. “Eu, com todos os problemas da minha infância, não poderia ser uma boa mãe. As pessoas devem fazer o que sabem, eu não saberia ser mãe”, reconhece. Mesmo aproximando-se da velhice, Luciana afirma: “Eu nunca me arrependi dessa escolha”.

                Teve vários namorados. Segundo ela, todos eram pessoas extremamente sensíveis e inteligentíssimas, os únicos que conseguiram ultrapassar a barreira do visível para adentrar a alma de Luciana. Eles foram capazes de enxergar além da máscara de amargura na qual se escondia. “Os poucos que me conheceram de verdade, o meu interior.”

                Não pensava em casamento, mas tinha certeza que queria viver ao lado dele: “Antoninho”, seu primo em segundo grau despertou, de uma hora para outra, um sentimento que fez a vida de Luciana ficar mais leve. Ela tinha 27 anos e ele 35. Conheciam-se e conviviam desde a infância, porém em dado momento perceberam que não mais poderiam viver separados.

Ele vinha de Caxias do Sul, de ônibus. Ela o esperaria de carro, na rodoviária de Porto Alegre, para então seguirem viagem, não sabiam para onde. Não importava. Desde que estivessem juntos, eles iriam para qualquer lugar. Ao descer do ônibus na rodoviária, Antoninho sentiu algo estranho na perna e caiu. Tinha trombose. Luciana levou-o para o hospital e dias depois estava bem, buscando Luciana na escola. Ao chegar na casa da cidade, enquanto ela arrumava a mesa do almoço, ele foi comprar pilhas para o radinho de Guilherme, que na época era um menino. Foi só o tempo de chegar do outro lado da rua e Luciana pôde ouvir de casa os gritos de socorro de quem passava no momento. Antoninho sofreu um infarto, foi o quinto. Dessa vez não poderiam mais ficar juntos.

Depois da morte de Antônio, Luciana viveu cinco anos como se estivesse anestesiada. “Minha vida era fazer tricô e comer bergamota”. Engordou 19 kg e também queria morrer. “Eu nunca quis casar, mas eu tinha certeza que viveria com ele pra sempre”. A relação com primo despertou o que Luciana tinha de melhor, foram apenas três meses e meio que deixaram marcas intensas. Luciana explica que as pessoas são como espelhos, cada um refletindo o que o outro é. Se o espelho é pequeno, refletirá a outra pessoa de forma pequena. “O Antoninho era um espelho gigantesco”, comenta com os olhos marejados.

Ela mantinha relações muito profundas com os namorados. Tanto que, 18 anos depois de não ter notícias de um deles, cerca de cinco anos após a morte de Antoninho, em desespero, precisando de alguém que a amparasse, ela descobriu o número e ligou para um antigo namorado. Bastou dizer “alô”, o homem identificou sua voz. 15 minutos depois, foi ao encontro dela e os dois conversaram como se tivessem se visto na semana anterior. “Todos os meus amores foram grandes”, recorda emocionada.

A mesma profundidade é percebida nas amizades. Certa vez, em uma viagem, ao saber do falecimento dias antes do pai de uma grande amiga, que também não via há muitos anos, ela decidiu retornar e ir visitá-la, mesmo sem avisar, levando seus sentimentos, pois ela era muito apegada ao pai.  Chegando lá, viu na janela da casa uma velhinha olhando para o quintal, era a mãe da amiga – a viúva. Quando Luciana entrou pela porta a senhora parou emocionada, retirou os óculos, pois as lágrimas jorram sobre eles, e apertando-a em um abraço disse entre soluços: “Eu sabia que tu virias. Eu estava te esperando”. Transcorrido um tempo, na hora da despedida é a amiga que surpreende pela consideração por Luciana. Entrega um embrulho com uma pedra, que foi um objeto bastante significativo e de grande apreço do seu pai morto. A pedra está até hoje guardada na casa de Luciana. “Eu jamais esquecerei esse gesto de carinho.”

A despedida de uma relação conflituosa

Já na maturidade de Luciana, quando dona Onda tinha então 87 anos, adoeceu. A professora largou tudo para cuidar da mãe, ficava todos os dias junto dela. Era câncer no intestino. No sofrimento, amedrontada pela doença, e talvez relembrando os tempos de infância da filha e a relação difícil que sempre tiveram, ela pergunta: “E se tu me deixa?”. Com juras de jamais deixar a mãe anciã, Luciana confortou-a.

Transcorrido certo tempo, nos últimos minutos antes de morrer, Luciana conta com uma expressão de orgulho, misturado a uma ponta de melancolia, que ela e seus irmãos estavam reunidos em torno da mãe. Então Dona Onda olhou para a filha biológica e repetiu cinco vezes: “Muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada”. “Ela repetiu assim mesmo, cinco vezes”, garante Luciana, indicando com os dedos das mãos.

Dos livros, uma vida

A solidão fez-se mragem

Em São Francisco de Paula, pra qualquer pessoa que se pergunte, todos sabem quem ela é e terão uma opinião na ponta da língua. A “Luciana da Miragem” é idolatrada por uns e causa estranhamento em outros. Para muitos é somente “aquela louca que construiu um castelo no meio da cidade”. Chegam a dizer que ela vive enclausurada dentro do “castelo”. Mas não é verdade, Luciana está sempre pela rua, entre uma ida ao banco e outra, ela, com seu andar vagaroso, como se estivesse perdida num mundo que não é o dela, é seguida pelo barulho das patinhas de Pretinha ao tocar o calçamento da Júlio.

Segundo sua irmã Silvana, “o mundo da Luciana sempre foi os livros, lia muito, ela dava coisas pra gente ler, vivia presenteando com livros”.

Dentro da livraria, ela é a anfitriã mais dedicada. Acompanha os visitantes, conta um pouco sobre cada espaço que compõe a Miragem que criou, explica curiosidades da cidade, indica lugares para turistas, enfim… estabelece uma relação de carinho e confiança com os clientes. Que sempre, como ela pede, saem por aí dizendo que São Chico tem livraria. Não raro, eles tornam-se amigos.

Hoje, a felicidade dela é definida pelo convívio com os visitantes da livraria e com os seus cachorros e a pureza deles, que, se somados desde quando começou a adotar, seriam hoje 180. Em sua casa, no Faxinal, os animais desfrutam de, além dos cinco espaços dedicados a eles, o campo todinho para correr e brincar.

O que ela lê? Luciana admira a arte de escrever, como ela define. São referência para ela Machado de Assis, Cyro Martins, Stefan Zweig e os russos Tchekhov, Dostoiévski e Tolstói, entre vários outros. Atualmente está lendo “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, e afirma: “o importante não é ler muito, é ler bem”.

Bem afastados do Goethe, do Proust, da Virgínia Woolf,do Graciliano Ramos e do Erico Veríssimo, há livros escondidos, numa estante isolada. Perto da saída para a Casa de Chá, uma plaquinha indica, em vez do gênero, o escrito: “livros da moda”. A dona afirma que se sente desconfortável com eles, pois só gostaria de oferecer uma literatura mais elaborada. “Quem quiser os ‘ 50 tons de cinza’ nós temos aqui, mas estes livros não são a cara da livraria. A cara da Miragem é a boa literatura”, declara. E entrega: “nunca li nenhum destes livros da moda, prefiro os clássicos”.

Um livro que recomenda e que sugere seguidamente como presente é “Cartas a um jovem poeta” de Rilke. Desse livro, ela lembra um episódio curioso. Numa tarde movimentada, naquelas que todos os ambientes da livraria parecem virar um só e a aglomeração de gente é tanta que a saída é ir para o pátio interno, Luciana atendia uma moça que procurava um presente para um médico. Pediu sugestão para a livreira que indicou o livro de Rilke, numa versão de bolso. Ao ver o preço, cerca de R$ 9,00, a jovem olhou com desdém e perguntou se Luciana não poderia indicar algo melhor, aquilo era muito simples. A moça não entendeu que o preço nada tinha a ver com a qualidade da obra, muito menos a velha história de não julgar um livro pela capa.

A Miragem Livraria ainda causa emoção e encantamento na dona, não raras vezes ela vai até a frente do prédio e volta dizendo entusiasmadamente às funcionárias: “mas é bonita esta livraria!”. Além disso, muitos momentos inesquecíveis ocorreram lá, como o lançamento da nova edição do seu livro, que dá nome ao espaço. O “Miragem” é uma coletânea de seus poemas e escritos que datam desde a infância da livreira. A primeira edição foi lançada em 1999, um ano antes da livraria nascer. Em 2010 a obra foi reeditada e recebeu imagens, em sua maioria fotografias da fazenda no Faxinal, do casarão da família e de parentes. Também apresentou algumas cartas que Luciana escreveu, hábito que mantinha com afinco. O livro de 234 páginas foi reeditado pela Editora Dolika-Afa. Luciana o classifica como “prosa poética”, a partir da definição que uma professora de português deu certa vez.

Outro momento inesquecível para ela e mais recente foi a inauguração do sebo, no terceiro andar da livraria. Ao som de ‘Luzes da Ribalta’, tocada no serrote (instrumento usado com arco de violino ou viola) por Paulinho Pires, no dia 5 de outubro deste ano, Luciana pôde exaltar sua alegria.

“Antes de ser comerciante, sou apaixonada pelos livros”, afirma

A livraria surgiu da necessidade de Luciana provar que podia fazer algo realmente bom, mostrar todo seu potencial. Por isso ela não abre mão de fazer tudo bem feito, ter os melhores livros, oferecer os melhores e mais bonitos produtos e o melhor atendimento. Muito se deve às suas funcionárias, que em sua maioria a acompanham há anos. A funcionária mais antiga, talvez aquela que mais conheça a livreira, é Maria das Graças Antunes de Oliveira Silva, a “Cota”, 50 anos. Está com Luciana desde quando a Miragem era na galeria, no final do ano 2000. Acompanhou toda a transição da pequena livraria, para o grande empreendimento e atrativo turístico que acabou se tornando hoje. Foi sua primeira funcionária.

Cota viveu, junto com a chefe, momentos importantes que ficaram marcados na memória de Luciana e na história da Miragem. E tenta explicar o fato da Miragem ser o que é hoje resumindo o que foi a vida de Luciana. “Ela era uma criança sozinha, que ouviu muitas coisas. Coisas ruins. Foi tratada sempre com indiferença, teve de se superar, por isso fez essa livraria grande, magnífica. Para mostrar que pode, sabe? Que é capaz.” E reforça falando sobre as dificuldades que uma mulher empreendedora, sozinha, e que sabe o que quer, enfrenta. “A Luciana é uma mulher à frente do tempo dela.”

No início as duas tinham uma relação pessoal mais próxima, jantavam juntas, conversavam mais. Hoje essa relação se restringe mais ao ambiente profissional. “Mas ela sabe que se precisar de mim para qualquer coisa, eu estarei lá, e vice-versa”, justifica. Essa disponibilidade ficou comprovada até nas vezes que Cota saía com Luciana para tratar e cuidar dos cachorros da rua.

A livreira, por querer fazer tudo perfeito, dá muita atenção aos detalhes. Uma pisciana perfeccionista, com ideais firmes. Mas ela tenta esclarecer: “Tudo só está bem quando é o melhor que eu posso fazer”. Tal perfeccionismo gera diversas manias. Seguidamente repreende uma funcionária que esquece que as canetas devem ser guardadas viradas para baixo e os lápis para cima. “A Luciana é cheia de manias, acho que elas são como uma fuga. Talvez sejam o resquício de algum trauma do passado que ficou”, conta Cota. Já sua irmã Silvana enxerga a atenção aos detalhes de outra maneira. “Ela percebe tudo, capta tudo. Nada escapa a ela”, declara.

A chefe e a funcionária são no fundo duas mulheres parecidas em muitos aspectos. Mulheres de ideias firmes que às vezes divergem. Uma parceria de mais de uma década que tem resultado em bons frutos. Cota lembra com graça as palavras da chefe: “A Luciana diz que eu aturo ela, mas se eu aturo, ela também me atura”, brinca.  E acrescenta: “Meu jeito de demonstrar que gosto dela não é bajulando”.

A vendedora já presenciou várias situações com pessoas que passaram pela vida da livreira, e demonstra sua preocupação com Luciana: “Por não ter com quem dividir a vida, ela fica à mercê de pessoas que se aproximam por interesse”. E completa, falando dessas pessoas: “É muito fácil rir para uma pessoa e quando ela virar as costas ficar falando dela. Eu respeito a Luciana”.

Cota considera que, por causa do passado de angústias e sofrimento, a dona da livraria às vezes permita que pessoas não tão sinceras estejam por perto. Porém, se em algum momento pessoas assim se acercam de Luciana, por outro lado, a relação das duas é de muito respeito e confiança. “Ela é uma pessoa muito bondosa, ajuda as pessoas que precisam, serve aos outros e às vezes fecha os olhos para algumas situações, o que acaba prejudicando ela”, confirma Cota.

O futuro

Entre suas perspectivas para um futuro próximo está cuidar dos seus 33 cachorros, dois quais tem saudade por estarem no Faxinal e ela vivendo no seu apartamento em cima do Salão de Eventos da Miragem, enquanto o casarão é restaurado. Ela também não dorme mais lá pela insegurança. Por medo da onda de assaltos que acontece na cidade, optou por não ir diariamente até a fazenda.

Luciana é uma pessoa empreendedora e realizadora. Na sua mente sempre tem espaço para uma nova ideia, um novo projeto. Agora o próximo é completar o plano inicial da livraria, construindo no terreno ao lado da Miragem uma réplica da primeira Igreja da cidade, feita pelo capitão Pedro da Silva Chaves, fundador de São Francisco de Paula. Pretende também, criar um memorial português para valorizar o povo que tem a cultura mais presente na cidade, e um espaço com fogo de chão e uma estrebaria. “Quero trazer um cavalo pra colocar uns dias ali e deixar um cheiro de galpão”, conta, animada.

Para realizar todos os objetivos que traçou foi preciso uma cabeça nas nuvens. Luciana é dona de mil ideias, sempre “inventando moda”, ela guarda ainda muita imaginação para, quem sabe um dia, realizar. Acostumada a concretizar os sonhos originados na sua mente hiperativa, ela lembra uma frase de Tolstói. “A gente pode até ficar pelo meio do caminho, mas o horizonte tem que ser as estrelas.”

E esse horizonte parece não ter fim. Um de seus sonhos é a construção de um condomínio com casas subterrâneas, cobertas de campo. Viu essa técnica na Alemanha e na Argentina, e aproveita para refletir sobre uma questão que tem lhe tirado o sono. “Não sei se será possível, porque hoje em dia os ambientalistas estão beirando o ridículo com exigências absurdas e infundadas. Antes tínhamos a paisagem mais linda, se respeitava o ecossistema”, critica.

A revolta dirigida aos ambientalistas se origina numa questão amplamente debatida na região em que o município está inserido, os Campos de Cima da Serra, da qual Luciana é a favor – a queima (ou melhor, a “sapecada”) de campo.

Junto com outros moradores do campo, Luciana escreveu o “Manifesto Serrano”, documento que apresenta o ponto de vista de quem é a favor dessa prática histórica, mas que foi proibida e hoje só é possível realizar tendo uma licença específica, que depende de vários processos burocráticos. “É uma lei insensata, terminou com a paisagem, os animais estão morrendo”, afirma.

As pazes com o passado

Luciana construiu sua história a partir das amarguras e da solidão que a vida lhe impôs. Com a Miragem, adquiriu a paz que sempre sonhou ao provar para todos, e principalmente para si mesmo, que podia fazer algo muito bom. Ainda acredita nas pessoas, apesar de tudo, não guarda mais mágoas. Dona de uma personalidade forte, polêmica e com opiniões tão imutáveis quanto seu caráter, por vezes choca quem não conhece seu jeito. Acostumou-se a ouvir críticas e hoje as recebe bem, e admite: “Eu era uma pessoa muito difícil de entender”.

O modo gentil de tratar os outros e a fala articulada, quando aborda de repente um cliente dentro da loja –  “meu amigo, já viste este livro?” –  deixam claro que Luciana firmou as bases de sua vida e, enfim, pôde se encontrar, a partir do trabalho e da persistência. Ela entende que um negócio só pode dar certo quando se preocupa com o bem comum. Talvez sejam por isso todas as mensagens carinhosas de visitantes do mundo todo, registradas nos 12 livrões preenchidos desde que a Miragem mudou-se para o novo endereço.

Ainda cultua o passado, como prova a composição da livraria, cheia de objetos que remetem a outras épocas e os livros do sebo, muitos com dedicatórias de desconhecidos que talvez já deixaram de existir. Mas agora ele não a incomoda mais. Ainda está tentando entender esse mundo louco que a cerca. “A leviandade que caracteriza nossa época e a pequenez do nosso tempo são atrozes”, afirma com convicção.

“A Luciana é uma pessoa extremamente sensível, anônima, não vê necessidade de aparecer”, esclarece sua irmã Silvana. E é esse desprendimento, mesmo depois de construir sua maior obra, que a torna uma pessoa única. A Miragem não poderia ser outra coisa que não um ambiente transcendente. Surgiu de emoções conflitantes, sentimento de rejeição e de uma profunda solidão. Transformou a angústia de quem a sonhou numa razão para encarar a vida e deixar de lado os monstros do passado.

Não se sabe o que será da livraria depois que Luciana partir, ninguém se arrisca nem a pensar. Pois “a Miragem é ela, ela é a Miragem”, como bem disse Cota. O que se sabe é que, não importa o que aconteça, a Miragem sempre fará parte da vida daqueles em que a imaginação não cabe dentro de si.

A solidão, que tanto a atormentou a vida toda, a mesma que a fez buscar em seu interior a resposta para o que lhe angustiava, não existe mais. Virou Miragem.

*Perfil originalmente escrito em outubro de 2013.

À beira do meio-fio brotou uma rosa

30 ago
Era uma noite de enchente, dessas que instalam o caos no trânsito e na vida das pessoas. Agosto castigou com chuvas sem trégua e rios no limite máximo. BR 116 congestionada, som de buzinas, ruas alagadas. Mas Esteio não era só água. Dentro do Parque de Exposições Assis Brasil acontecia mais um dia na história da Expointer, essa jovem senhora na casa dos 36 anos que ainda se comporta como uma menina, vibrando de entusiasmo a cada visitante que chega.  Era quarta-feira, dia de muitos leilões, por todos os lados que se olhasse passavam animais premiados cujo valor atingiu cifras de arregalar os olhos. Em vários cantos as negociações aconteciam. Em um deles, um animal imponente, cheio de si, vencedor de várias provas em anos anteriores, acaba de ser arrematado por nada mais nada menos que justos, segundo o dono, 500 mil reais.
 As pessoas passavam com pressa, e nesse meio uma moça precisa se orientar para saber aonde ir, passa um homem e ela pede ajuda sobre algum lugar específico. Recebe uma recusa e um pedido de desculpas “mas o tempo está escasso”. Passa outro, a mesma coisa. Alguém logo ali, varrendo o meio-fio observava a cena. Aproximou-se meio sem jeito, vagarosamente perguntando se podia ajudar, com uma agilidade no olhar e um jeito de falar de quem se acostumou a precisar da ajuda dos outros e ter que “se virar” sozinha.
A gente vem ao mundo pra servir. diz ela satisfeita por ter indicado o que a moça precisava.
Uma Maria entre muitas outras, com nome de flor. Dona Rosa Maria de Jesus, desde o ano 2000 se adapta à rotina de um trabalho em ciclos que parece nunca ter fim. Um limpa-suja, limpa-suja constante. Dona Rosa é auxiliar de serviços gerais e conhece uma Expointer não tão prestigiada como a que conhecemos; uma feira de sujeira, desordem e lixo.
Pelas ruazinhas, entradas, quadras e qualquer que seja o espaço, está ela, varrendo e recolhendo o que sobra sem utilidade. As mãos com muitos calos não deixam dúvidas: ela trabalha das oito da manhã às oito da noite no evento. Nas suas atividades nem sempre um sorriso, como os que distribui a quem passa, é o que ela recebe de volta. Dessa forma ainda constata que o preconceito permanece e vem de quem está bem próximo: os próprios colegas.
A rotina desgasta, mas é necessária. Dona Rosa é que acorda o sol, 5 horas já está de pé, tomando o seu “pretinho” para em seguida entrar no ônibus que sai do bairro Rio Branco em Canoas até o Centro da capital. Ela é ambulante, vende roupas e todo o tipo de quinquilharia. Agora com o rigor da fiscalização, muitas vezes acaba tendo que voltar para casa sem a garantia da refeição dos dias seguintes. Por isso há 13 anos aproveita a Expointer para reforçar sua renda.
Os sinais dos seus 55 anos, quase todos marcados pelo trabalho de honestidade e esforço desde a infância pobre em Campo Bom, não enfearam os traços da filha da costureira e do pedreiro, que sonhava ser aeromoça e conhecer o mundo.
Eu ainda vou voar para a Europa! Afirma animada. Contaram para ela que lá a vida é mais fácil, mas Dona Rosa está sempre bem informada: – Mas eu sei que a crise lá tá feia, eu que não saio daqui, só para passear, já tenho minhas clientes e minha vida feita.
 Frequentou a escola só até a quinta série. Decidiu ir para Canoas quando ainda era mocinha, morar com uma tia. Mas a tia, que já não lhe dava muitas condições de vida, faleceu, e a miséria bateu à porta e a fez sair para as ruas tão logo, vendendo suas bugigangas.
Dona Rosa vive sozinha, nunca casou nem teve filhos, os pais são falecidos há muitos anos. Como costuma dizer a quem pergunta é “uma solteirona solitária”. Mas para sozinha ela não serve, sempre estão por perto os amigos e colegas, os mesmos que às vezes têm preconceito, também a tratam com a estima que uma amiga merece.
A falta de oportunidades e o cansaço do serviço não tiraram o brilho no olho de quem tem muitos planos e sonhos pela frente.
Eu quero fazer muita coisa ainda, quero conhecer lugares diferentes, visitar uns parentes que foram para o Paraná, também quero garantir minha velhice, eu não sei o dia de amanhã. – Enquanto conta suas metas para o futuro ela continua com a vassoura firme na mão fazendo seus movimentos repetitivos.
Dessa maneira Dona Rosa segue seus dias, varrendo as sujeiras da rua, limpando as calçadas e conduzindo as adversidades que surgem pelo caminho. Assim ela continua fazendo seu trabalho, com o mesmo sorriso de sempre e a disponibilidade para ajudar os outros, da rosa que não murcha no meio da poeira nem com as tempestades de agosto.
Dona Rosa Maria de Jesus
Foto: Karine Klein

Personagens das ruas

5 jun
 Conheça quem são aqueles que anonimamente contribuem para tornar São Chico um lugar melhor
 
Eles são pessoas comuns, com histórias de vida parecidas com a de muitas outras pessoas. Todos trabalhadores, que mesmo anonimamente, decidiram fazer a diferença em São Chico.  São serranos, naturais ou de coração, que optaram por deixar a acomodação de lado e fazer sua parte para uma cidade melhor. Esses personagens da vida real dão exemplos de perseverança, não desistindo fácil e provando no dia-a-dia como cada um pode fazer mais pelo lugar onde vive.
São pessoas pelas quais passamos na rua e muitas vezes não temos a dimensão do seu trabalho e do seu papel social na comunidade. Os “invisíveis” que não fazem questão de serem divulgados, mas que merecem o carinho e o respeito de cada um de nós.
Na cidade o que não faltam são pessoas que atendem esses requisitos, confira a seguir, três histórias diferentes, mas com um ponto em comum, a dedicação pelo trabalho e a certeza de melhorar São Chico.
Valdoci da Silva
Crédito: Karine Klein

O papeleiro que constrói sonhos no lixo

 

Com um sorriso no rosto e sempre muita disposição, ele percorre as ruas de São Francisco de Paula numa carroça azul puxada por Cigano, seu cavalo e companheiro de trabalho. Por onde passa, Valdoci da Silva além de materiais recicláveis, recolhe também os agradecimentos e a confiança da comunidade. Essa relação de respeito foi se construindo ao longo do tempo e hoje não são poucos os estabelecimentos que deixam suas chaves com o coletor para que ele busque os resíduos que iriam para o lixo.

Rutinéia Dutra Christofari é gerente de uma loja de departamentos no município, e convive com Valdoci há cerca de três anos. Durante todo esse tempo o papeleiro busca o que sobra das embalagens de mercadorias que chegam de caminhão até o estabelecimento. Caixas de papelão, entulhos e todo o material que iria para o lixo. Rutinéia considera Valdoci um homem digno de respeito. “Ele é muito honesto, diversas vezes já encontrou produtos esquecidos no meio dos papeis de embrulho e todas as vezes devolveu. Uma vez foi um pacote inteiro de blusas, teve outra situação que foram deixados um par de chinelos. E ele sempre devolve”, comenta.

Nessa função há oito anos, o serrano recolhe diversos detritos, como papel, ferro, eletroeletrônicos e eletrodomésticos e os encaminha para usinas de reciclagem e empresas da região, como a Gerdau. Os únicos materiais que Valdoci não recolhe são vidro, isopor, e embalagens do tipo Tetra Pak, mas segundo ele “fora isso recolho de tudo, e olha que tem cada coisa…”

Dificilmente há um final de semana ou feriado que Valdoci não esteja trabalhando, seja nas coletas na rua ou no galpão onde deposita e separa os materiais, em frente à sua casa. Ali ele pode ser encontrado até a noite, trabalhando com humildade e sempre pensando no futuro.

Quem o conhece sabe: não falta simpatia no papeleiro, e ela é resultado de seu bom humor para com a vida, mesmo que nos últimos tempos ela tenha pregado muitas peças nele.

Diagnosticado em 2009 com câncer na laringe, Valdoci obrigou-se a deixar suas atividades de lado e tratar da sua saúde. Desenganado pelos médicos, ele não se deixou abater, continuou o tratamento e enfrentou a situação. Nesse tempo contava com o apoio de sua companheira, Iara Maria, que além de dividir por 22 anos a vida e os planos com ele, dividia também o trabalho. Hoje recuperado, mas em observação, o papeleiro segue sua rotina com a mesma dedicação de sempre, porém dessa vez lamentando a falta da esposa, que o deixou há um ano, também vítima de câncer.

Em sua casa ele mostra com orgulho o fruto do seu esforço: a mobília quase completamente composta por artigos que as pessoas não quiseram mais e jogaram fora ou doaram para o desmanche, mas que de alguma forma Valdoci soube aproveitar. Diversos eletrodomésticos, roupas, calçados, relógios, toca discos, televisões, telefones, entre muitos outros artigos que teriam como destino certo o lixo, compõe sua casa. Seu carro, um Palio Weekend branco comprando com o esforço do trabalho diário, também é motivo de orgulho para o papeleiro.

Pelas paredes além de quadros, também retirados do lixo, muitas imagens de santos estão espalhadas reafirmando e aumentando cada vez mais a fé, que segundo ele, foi o que o salvou do câncer, mesmo depois de um tratamento errado.

Aos 51 anos Valdoci tira seu sustento do que as pessoas não querem mais, mesmo sem a pretensão, ele contribui para tornar a cidade mais limpa e dar o destino correto para os resíduos que se descartados de forma errada iriam prejudicar o meio ambiente.

Fabiana Kopittke
Crédito: Arquivo Pessoal

 Um amor que vem da infância

Há oito anos atrás quando veio trabalhar em São Chico, Fabiana começou a recolher animais das ruas, na maioria cães. Depois de castrá-los ela procurava por adotantes. Passaram quatro anos e a advogada, funcionária pública do TJRS, veio morar definitivamente aqui, e conversando com colegas de trabalho percebeu que era possível destinar valores de condenações criminais para a causa dos animais de rua, desde que houvesse uma associação civil criada para essa finalidade. 
Assim foi aparecendo uma pessoa aqui e outra ali que já faziam esse trabalho individualmente, elas se uniram e criaram em 2010 a Associação Civil Amigos de Rua, cujo objetivo principal é desenvolver um trabalho a longo prazo promovendo a diminuição de animais de rua através da castração.
Com a atuação da ONG no município e através das redes sociais, as voluntárias conseguiram chamar a atenção para a causa e sensibilizar as pessoas. Segundo Fabiana, que ocupa o cargo de Diretora Administrativa da entidade, hoje já é possível notar uma tomada de consciência por parte da população em geral e dos órgãos públicos e uma mudança de atitude fazendo todos se envolverem e assumirem a responsabilidade de resolver esse problema de saúde pública.
Mas nem tudo se deu de modo fácil, ainda são muitos os casos de abandono e maus tratos aos animais e ainda é preciso mostrar às pessoas que cada um deve fazer sua parte para diminuir os cães e gatos nas ruas. A ONG não possui abrigo, por isso o trabalho das voluntárias é tão importante, elas buscam quem os queira e possa de fato dar uma vida digna, com atenção para saúde e cuidados básicos para os bichinhos.
Mantida por doações particulares e de seus próprios voluntários, a ONG também conta com a colaboração do Poder Judiciário e do Ministério Público da nossa cidade. Algumas vezes também recebem apoio de empresas. Porém não possuem atualmente nenhuma verba da Prefeitura.
Desde criança Fabiana já se importava com os animais de rua e muitas vezes, quando os pais permitiam, os levava para casa. Mais tarde ajudou ONGs em Porto Alegre, mas o envolvimento mais sério se deu aqui no município e hoje, grande parte do seu tempo livre ela dedica para os afazeres da ONG.
Fabiana, aos 36 anos, considera que os animais, assim como as crianças, sãos os seres mais puros com quem podemos conviver. “Essa pureza me ensina muita coisa. O tão batido amor incondicional, que eles realmente têm, a gratidão, a capacidade de reaprender a confiar, e como coisas simples podem ser motivo de tanta alegria.”
Para a advogada, apesar da ajuda escassa, de serem poucas voluntárias – somente 7 –  e de receberem muitas críticas, tudo isso compensa quando ela vê animais antes desamparados, debilitados, que passaram por diversos tipos de sofrimento, voltarem a ser alegres, confiantes e saudáveis quando encontram um lar com adotantes que se comprometam com eles.
A ONG Amigos de Rua vem fazendo sua parte unindo as pessoas que lutavam sozinhas por um pouco de dignidade aos animais da cidade. Sempre tentando agregar mais pessoas interessadas em mudar a realidade dos animais e cobrar dos responsáveis uma mudança de atitude no nosso município.  

Athos Xavier de Brito- “Peladinho”
Crédito: Karine Klein

 O esporte como forma de driblar as dificuldades

Ele anda pelas ruas de São Chico, na maioria das vezes com uma pasta debaixo do braço.  Nela está sua história: seu passado e seu futuro. Athos, ou o “Peladinho” como é conhecido por todos, carrega sempre consigo as ideias em forma de documentos, todas organizadas e exibidas com orgulho. Seu passado representado por tudo que já desenvolveu na área cultural e esportiva, e seu futuro contido nos projetos que apresenta à comunidade.
 A causa não poderia ser mais justa, ele só quer poder dar continuidade ao seu trabalho, totalmente voluntário, que já tirou e segue tirando meninos e meninas das ruas. O que Peladinho oferece é uma opção de lazer para as crianças e os jovens, a escolinha de futebol Pelé & Pelado que atende gratuitamente meninos e meninas, na sua grande parte carentes, de 7 a15 anos.
A escolinha existe desde 1988 e foi criada por ele para tentar tirar seu filho Salomão do mundo das drogas, infelizmente não deu certo, Peladinho perdeu o filho, porém ganhou muitos outros. Até hoje passaram pela escolinha cerca de 450 crianças e adolescentes ao longo dos anos. E toda vez que reencontra algum desses meninos, hoje homens casados e com filhos, sente orgulho ao ver que contribuiu para dar um futuro mais digno a eles.
 Muitas conquistas a instituição já obteve, entre elas a de trazer por duas vezes três categorias de base do Grêmio para jogar com os alunos da Pelé & Pelado. Em 1992, trazendo ídolos como Ronaldinho Gaúcho, Tinga e Gavião e mais adiante, em 2007 também.  Outro grande orgulho de Peladinho foi preparar e treinar a categoria de 11 anos que passou duas décadas sem perder jogos.
Sempre apresentando projetos na Câmara de Vereadores, ele busca apoio do poder público, mas a ajuda na maioria das vezes vem das doações motivadas pela admiração que as pessoas sentem pelo seu projeto. Atualmente, a escolinha possui três locais para treinar, o campo do Atlético Serrano, o do DAER e outro espaço de um particular. Toda a vez que os meninos participam de campeonatos fora do município os gastos com transporte e alimentação dos jovens atletas são também custeados somente com patrocínios, o que dificulta manter o projeto.
Aos 64 anos, além de voluntário no esporte, Peladinho é poeta e compositor, premiado em diversos festivais de música na região. Sempre envolvido em projetos na área de esporte, cultura e educação, outra idealização dele foi a Banda de Latas que esteve presente em muitos eventos no município.
Segundo Peladinho, sua intenção é servir não só no esporte, mas para desenvolver a cultura na cidade, o que vem fazendo à cerca de 40 anos pela vontade de ver um futuro melhor para os jovens de São Chico.

Por: Karine Klein

O gaiteiro que toca com os dedos e com o coração

8 fev

Perfil

No ligeiro dedilhar do teclado, no ruído cadenciado que ecoa pelo ambiente e no espírito que parece se libertar do corpo ao consumar a harmonia entre o som e o ritmo… aí está Israel da Sois Sgarbi, o gaiteiro serrano que toca com os dedos e com o coração.

Aos 31 anos, a fala mansa, o jeito calmo e discreto de um típico canceriano, de longe não deixam transparecer o fervor e a emoção que emergem de seus dedos e de todo ele próprio na hora em que toca sua gaita. Como numa espécie de transe, nada mais importa, apenas transmitir o sentimento da música e as energia de suas notas.

Seu gosto pela música iniciou ainda na infância. Nasceu em Caxias do Sul, porém toda sua vida sempre esteve ligada a São Francisco de Paula, e foi na Cabanha Capão da Ferradura, no Distrito de Eletra, que teve início a paixão pelo acordeon. Na infância solitária do campo, Israel foi uma criança tranquila. Na sua imaginação inocente, desde cedo o gado e os cavalos foram suas companhias. “As coisas apenas mudaram de tamanho. Antes eu brincava com reses de plástico, hoje elas são de verdade”, conta. Aos 10 anos começou a tocar. “Estava um dia na sala da minha casa brincando com a fazendinha, os cavalos e percebi um enorme silêncio, por um instante senti um vazio por dentro, então fui até a eletrola, vi os discos que meu avô tinha e por acaso, coloquei o disco dos Irmãos Bertussi para tocar”.

Naquela ocasião, a criança jamais poderia supor que aquele gesto espontâneo para espantar a solidão mudaria para sempre sua vida.  “A partir daquele dia fui tomando gosto pela música”, recorda.

No começo: os mestres

“Eu não queria me apresentar, mas minha mãe praticamente me obrigou.”

Nunca gostou de barulho, sons estridentes, talvez por isso a identificação imediata com a gaita, de som calmo e ao mesmo tempo envolvente. E assim foram surgindo as primeiras notas e apresentações. Alguns de seus mestres, renomados na música e na tradição, deixaram seu legado para Israel. Nomes como Honeyde Bertussi, Oscar dos Reis, Paulo Siqueira, Osvaldinho do Acordeon, Luciano Maia e Adelar Bertussi, contribuíram ainda mais na formação musical e no amor pela cultura gaúcha.

Na Escola Musical Villa Lobos e na Sociedade de Cultura Musical de Caxias do Sul aos poucos as teorias e partituras foram se tornando elementos comuns do seu dia-a-dia. E num piscar de olhos, o jovem gaiteiro inicia seus shows e apresentações.

Em 1992, durante as comemorações da Semana Farroupilha, na agência do banco Banrisul, no bairro Lurdes, em Caxias do Sul, Israel teve pela primeira vez, aos 11 anos a sensação que sentiria muitas vezes mais tarde: a de apresentar seu talento para o público. “Na época eu só sabia tocar umas três músicas, três valsinhas simples, e eu não queria me apresentar, mas minha mãe insistiu tanto, praticamente me obrigou então eu tive que ir”, relembra.

A música e outras paixões

“Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus.”

 

Para Israel a música é uma missão divina, um privilégio para pouquíssimas pessoas. “Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus”. E por isso o gaiteiro pode se considerar muito abençoado. A sua primeira composição, feita aos 10 anos, integra as mais de 50 canções criadas por ele, entre letras, melodias e composições completas (letra e música).

Entre as composições está a recém vencedora do Festival Cante uma Canção para São Chico, que ocorreu durante o 17º Rodeio Interestadual de São Francisco de Paula, em dezembro do ano passado. A obra “Canto a São Chico”, foi composta por Israel quando este tinha apenas 21 anos e até então era inédita para o público. Na música, o gaiteiro homenageia as belezas do município, dando destaque para a topografia dos Campos de Cima da Serra. Um dos versos retrata bem a vida nos pampas serranos; “Em cima da serra onde eu vivo é um lugar de primeira, tem peão trabalhador e prendinha dançadeira. Tem boi gordo no campo e vaca de leite na mangueira.”

Para compor uma obra, o músico explica o que é necessário. “No processo de composição das minhas músicas eu preciso de silêncio, de estar bem comigo mesmo”. Segundo ele, a música nasce de maneira aleatória. “Vou escrevendo trechos da música, depois encaixo eles e vejo qual a melhor ordenação”. O acordeonista segue quatro vertentes musicais, a música gaúcha tradicionalista, a clássica (ou erudita), a argentina (tangos, chamamés e milongas) e a MPB. “Passeio por essas quatro vertentes e me sinto à vontade em todas elas”, conta.

O Gaiteiro ressalta o valor da obra que tantos aqui no sul executam, segundo ele, essa arte atemporal possui ritmo, harmonia e boa melodia.  E conta que sua relação com a música não é somente nutrida por amor, mas também por respeito. “Respeito muito a música, ela me dá tudo o que eu preciso. Me faz ocupar a mente, que muitas vezes pode ser minha pior inimiga, e também me faz evoluir e melhorar como pessoa”, explica.

Além da música, os cavalos são sua paixão, e a vida no campo é algo que o inspira. “O campo é um grande professor, ele te ensina a aceitar. Aceitar a vida, a morte, o inverno e o verão. Ele me ensinou a aceitar sem esbravejar e a enxergar a vida de uma maneira adulta. Como no campo, a vida é feita de safras, e eu aprendi que a gente colhe o que planta. Procuro transpor para minha vida tudo que aprendi no campo”.

O erro que virou acerto

“O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante”.

Mesmo com o talento florescendo a cada dia, a profissão musical demorou para ser aceita pelo acordeonista. “Custei para aceitar que meu destino fosse a música, mas tudo são consequências do que vivi no passado. Se hoje colho coisas boas, foi porque plantei coisas boas. Se hoje posso tocar em qualquer lugar é graças às horas e horas que me dediquei praticando”, afirma.

Aos 19 anos tudo que Israel queria era tocar sua gaita. “Nessa época minha mãe me balançou e veio com aquele discurso de que não é possível viver de música. Então saí da fazenda e fui estudar em Caxias”. O interesse maior era por veterinária, como não passou no vestibular, resolveu prestar a prova para jornalismo. “Tudo isso foi muito bom, porque o jornalismo me possibilitou aprender a expressar melhor as minhas idéias através da voz e não somente pelas notas musicais”, conta.

Como do destino não dá para fugir, eis que a música falou mais alto. “Eu sempre tive esse gancho com a arte nas mídias que trabalhei, e trabalhei em praticamente todas elas. Apresentei o programa Arte e Tradição na TV Câmara de Caxias e lá eu levava grandes gaiteiros que já eram famosos, conjuntos novos que estavam começando, conjuntos velhos, isso formava uma integração na música tradicionalista. O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante, ele agregou valor à minha arte e me fez enxergar mais o lado social, e valorizar as pessoas”.

Da música para o fogão

 “Me viro muito bem na cozinha.”

 

Poucos sabem, mas das mãos que reproduzem as canções, outras habilidades também vão surgindo. Nas horas vagas a cozinha é o lugar com que o gaiteiro mais se identifica. “Gosto muito de cozinhar, não só de fazer aquela “comida de sempre”, gosto de criar pratos elaborados, molhos especiais. Me viro muito bem na cozinha”, revela.

Quando não está praticando sua música nem na lida com os cavalos, os filmes também detém a atenção de Israel. Filmes de época, de ação e alguns nacionais que retratam a saga gaúcha são seus preferidos.

As influências

“Todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim”.

 

Seus gostos e influências musicais são bastante variados. Vão desde Paulito Barbosa, Soledad, Irmãos Bertussi até Paula Fernandes, música country, moda de viola, sertanejo de raiz, samba de raiz e música clássica. Entre suas canções prediletas está o Cancioneiro das Coxilhas, dos Irmãos Bertussi. “Essa música marcou minha vida”, diz.

Muitos são seus ídolos, entre eles admira Luiz Carlos Borges, diretor do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. “Em termos de música, pois ele toca em vários lugares, qualquer estilo, e também como pessoa, procuro me espelhar nele”, acrescenta.

Até hoje muitos foram seus shows, bailes e apresentações. Israel passou por diversos lugares e todos representam muito para ele. “Gostei muito de ter tocado no Paiol, em Caxias do Sul, no Teatro Guaíra, em Curitiba, junto com Osvaldinho do Acordeon, Renata Sbrigui, Frank Marroco, Paolo Gandolfi e Marco Patarime. Mas todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim, desde um galpão de chão batido até um lugar como o Teatro Guaíra”, afirma.

Os planos e os medos

“Eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro”.

 

Segundo Israel, seu maior sonho é alcançar a evolução sem perder a tradição. Para este ano de 2012, o gaiteiro afirma, “Quero tocar muito, viver minha música intensamente”. E confessa, “eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro. Como já disse, o futuro é o que eu planto hoje; acho que estou plantando coisa boa”.

Apenas uma coisa lhe causa temor. “Tenho muito medo da ignorância da humanidade, de como as pessoas podem ser más e cruéis por isso”, comenta.

A gratidão e o cuidado com os que ama

“Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

 

A sensibilidade ultrapassa os limites musicais, ao conhecer melhor esse gaiteiro de jeito discreto e introspectivo ele vai aos poucos revelando o amor e a gratidão por quem lhe é importante. “Amo muito minha família, meus bichos, minha música. Cuido das pessoas que fizeram muito por mim. Para os meus avós procuro fazer um pouquinho, isso é o mínimo que posso fazer por quem me tornou o que sou hoje. Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

 

O professor

“Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles”.

O acordeonista é também professor. Ensina várias pessoas, de várias idades, homens, mulheres, jovens e crianças. Na relação que mantém com seus alunos, ele procura deixá-los à vontade. “Tive um professor que me apresentou o mundo da gaita, as partituras, que me fez ainda mais tomar gosto pela música, mas seu sistema era quase um regime militar”, brinca. No âmbito de ensino-aprendizado, Israel deixa claro qual é o seu papel. “Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles, eles que saberão até onde querem ir”.

Muitos de seus alunos também o acompanham na Associação de Acordeonistas e Gaiteiros de São Francisco de Paula e dos Campos de Cima da Serra, que completará seu primeiro aniversário em abril de 2012. “A tradição dos gaiteiros de cima da serra é única, ímpar, incomparável. Não é por acaso que daqui saíram grandes nomes da música tradicionalista. Até hoje vemos muitos talentos escondidos, não é fácil encontrar tanta gente que toque um repertório tão variado num local tão pequeno, por isso surgiu a Associação”, explica.

O Grande Arquiteto do Universo

“Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo”.

A espiritualidade é algo muito presente na vida do músico. De batismo católico, mas com muitas pinceladas do espiritismo, ele vai criando a sua própria doutrina. “Acredito que exista o grande Arquiteto do Universo, que criou e planeja as coisas. Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo, de que as pessoas que estão na nossa vida têm um motivo de estar, mas penso que é preciso viver o hoje, o agora da melhor maneira possível, vai saber se existe mesmo o outro lado, ou outras vidas, afinal, ninguém voltou ainda para contar”, brinca.

As Anitas de Israel

 “Ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade”.

-“Já terminou? Ah, eu tinha preparado uma resposta na ponta da língua se tu fosse me perguntar do amor.” (risos)

-“Então tá, e o amor Israel?”

Apesar do tom de graça, o acordeonista leva o assunto muito a sério e conta pausadamente, dando ênfase a cada nome. “Ana-Maria-de-Jesus-Ribeiro, a Anita Garibaldi. Ela é aquela mulher que vai pra guerra junto contigo, que cuida dos ferimentos dos soldados, ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade. Ela constrói as coisas contigo, cuida dos filhos, é uma esposa dedicada, é uma amiga, enfrenta todos os problemas junto contigo e ainda assim não perde a ternura e a delicadeza”.

-“E essa Anita já apareceu na tua vida?”

– “Bom, na verdade várias Anitas passaram pela minha vida, cada uma com algumas dessas características, mas não eram Anitas completas. Sou muito cuidadoso… essa Anita de verdade eu não encontrei ainda”.

15/Fev/2012

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