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Qualidade de vida à mesa

22 dez

A Agricultura Familiar como protagonista do cardápio em São Chico

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Alimento saudável, daqui e livre de agrotóxico, assim se faz na Coopaf-Serrana. Foto: Karine Klein

 

Comer melhor e mais saudável, este é o objetivo de quem pretende levar uma vida com mais qualidade. Priorizar alimentos orgânicos e ricos em vitaminas também. A Agricultura Familiar vem transformando a realidade em São Chico já há algum tempo, seja pela garantia de uma produção livre de agrotóxicos, pela preservação da cultura produtiva e gastronômica da região, ou pelo sustento das famílias produtoras, mantendo o homem do campo no campo, e movimentando a economia do município.

Mas antes é preciso entender o conceito. A Agricultura Familiar diz respeito ao cultivo da terra feito por pequenos produtores rurais, que normalmente plantam e produzem para sua própria subsistência e vendem os excedentes para o sustento da família ou complemento de renda. Tem como principal característica a mão de obra originada no núcleo familiar.

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Além das verduras, os biscoitos e artigos coloniais também são comercializados. Foto: Karine Klein

Em São Francisco de Paula duas organizações representam bem essa proposta, a Coopaf-Serrana e a Feira do Produtor Serrano.

A Cooperativa dos Produtores da Agricultura Familiar e de Consumidores de São Francisco de Paula LTDA começou a ser desenhada em 2006 através de um projeto de capacitação desenvolvido pela Secretaria Municipal de Agricultura e do MDA- Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ao término do projeto, 30 sócios de 15 comunidades fundaram em 25 de julho de 2008 a Coopaf-Serrana. Em um ano de fundação o número de sócios já havia dobrado e hoje possuem 71 sócios (famílias) não somente de São Chico, mas também de municípios como Canela e Itati. Em 19 de setembro de 2009 foi aberto o primeiro ponto de venda.

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Chimias e compotas de frutas também fazem sucesso na Coopaf.Foto: Karine Klein

José Evandir da Silva, o coordenador administrativo da Coopaf explica que ela surgiu da necessidade de se viabilizar a inserção dos agricultores familiares no mercado de produtos agrícolas, de forma organizada e com o suporte de pessoa jurídica. “A Coopaf-Serrana constituiu-se por necessidade de suporte comercial, tanto na venda como no fornecimento de insumos aos produtores, pois são atividades vedadas legalmente às associações. Além disso, está entre os propósitos da cooperativa realizar a aproximação entre produtores e consumidores locais, através do comércio solidário e cooperativo direto ao consumidor.”

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José Evandir da Silva, coordenador administrativo da Coopaf e Francisco Mello, representante do Conselho Fiscal. Foto: Karine Klein

Desde maio de 2015 na sede nova, localizada na Rua Frederico Tedesco, nº 355, dentro do Salão Paroquial, atendem de segunda a sábado, das 8h30min ao meio dia e das 14h às 18h30min. Comercializam verduras, frutas, legumes, bolachas, chimias e diversos outros, sendo que 90% de tudo que disponibilizam é orgânico.

Francisco Mello, representante do Conselho Fiscal, conta que pesquisadores das universidades seguidamente procuram a Cooperativa. “A Coopaf é referência no Estado, principalmente pela maneira que se formou”.

Outra representante da Agricultura Familiar no município é a Feira do Produtor Serrano, uma associação de 11 famílias das localidades de Boa Vista, Caconde, Recosta, Três Barras e Carapina.

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“Além de vender um produto sem agrotóxico conhecemos as pessoas daqui e os turistas”. Maria Geni Zambelli de Souza, agricultora familiar do Caconde. Foto: Karine Klein

Maria Zormiria Zambelli, presidente da associação da Feira conta que entre as frutas, verduras e produtos coloniais que comercializam, o que mais é vendido sem dúvida são as verduras e os pães. “Acredito que as pessoas prefiram comprar na Feira porque aqui garantimos um produto de qualidade por um preço melhor”, conta.

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Maria Zormiria Zambelli, presidente da associação da Feira do Produtor Serrano. Foto: Karine Klein

E é só ficar uns minutinhos ali para ter certeza disso que Maria afirma. O movimento é grande, principalmente nos finais de semana. Adão Bueno, morador de São Francisco de Paula e cliente assíduo fala a respeito de seu hábito de frequentar a Feira desde seu surgimento.  “Compro um pouquinho de cada um, para valorizar o produtor daqui. Acredito que as restrições que estão impondo a alguns produtos da Feira são negativas, pois eles deixam de comercializar produtos de qualidade, que sabemos a procedência, pois conhecemos as chácaras onde são produzidos e confiamos”.

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Adão Bueno, morador de São Francisco de Paula e cliente assíduo da Feira do Produtor Serrano. Foto: Karine Klein

E a Feira faz sucesso não somente entre os moradores de São Chico. O casal Lisiane Strack e Mozael Strack de Porto Alegre veio para a cidade comemorar o aniversário de casamento. “Queríamos levar produtos feitos aqui, então pedimos indicação na pousada em que estamos hospedados e eles nos disseram que não deixássemos de passar na Feira que valia a pena. E realmente valeu!” Conta Lisiane.

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Adão Bueno, morador de São Francisco de Paula e cliente assíduo da Feira do Produtor Serrano. Foto: Karine Klein

A Feira do Produtor Serrano fica ao lado da Prefeitura, na Avenida Júlio de Castilhos e funciona nas terças, sextas e sábados, das 8h às 18h, sem fechar ao meio dia.

 

Vídeo

Lauro Quadros – uma vida no rádio

26 mar

Perfil televisivo do radialista gaúcho Lauro Quadros.
Produzido na disciplina de Telejornalismo II do curso de jornalismo da Unisinos (São Leopoldo-RS)
Novembro de 2014.

 

A solidão fez-se miragem

5 jan
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Foto gentilmente cedida por Silvio Kronbauer©

A cena quase sempre é a mesma, ela acompanha os visitantes até as portas de madeira de demolição, envelhecidas pela ação do tempo. Na despedida, profere a frase que repete pelo menos uma dezena de vezes ao longo de um dia: “digam por aí que São Chico tem livraria!”. Ela fala sem conseguir disfarçar o orgulho na voz, mas ao mesmo tempo sem deixar de lado a simplicidade de quem recebe um velho conhecido em casa. Os clientes que se vão garantem a ela que dirão isso e muito mais, e que voltarão. E sempre voltam. E trazem consigo outros. Essas mesmas palavras são ditas para as próximas famílias, os amigos, os apaixonados, ou seja lá quem passe pelo número 811 da Avenida Júlio de Castilhos.

O prédio tem 2.956 metros quadrados, três andares e oito ambientes diferentes, incluindo a seção infantil, o sebo, o espaço adulto, a Casa de Chá, o pátio interno e um salão de eventos, cuja fachada é a réplica do primeiro banco do município de São Francisco de Paula, datado de 1918, e que tem em seu interior um minimuseu, com fotos antigas da cidade.  Para o casal que projetou a obra, Ricardo Segatti, e Cláudia Tubino Fregapani, foi como materializar o sonho de uma pessoa. “Ouvimos as características que ela queria, discutimos e hoje está aí… um lugar incrível. Cada vez que entramos na livraria, nos apaixonamos novamente por ela. Não tem como ser diferente”, comentam. O acervo é de mais de 20 mil obras, há também os objetos de decoração, bazar e brinquedos (na seção infantil).  A construção por si só já entrega o nome do local. Bem no centro de um município com pouco mais de 20 mil habitantes, existe uma Miragem. Uma Miragem no meio do nada, uma livraria que virou referência em todo o Brasil.

A arquitetura da construção preserva o antigo sem abrir mão do moderno. Para quem enxerga da rua, grandes janelas se abrem das paredes verdes. No alto, sobre as portas da entrada, fica um enorme relógio redondo, orientando a passagem do tempo para os serranos. Lá dentro, todos os objetos parece que se harmonizam, criando uma composição agradável aos olhos. Por entre as estantes ficam também quadros, esculturas, objetos de decoração, CDs, mas o personagem principal é sempre ele – o livro.

 Logo ao entrar é possível sentir o cheiro, ah… o cheiro dos livros! Aquele odor de histórias traz um mundo pronto para ser decifrado, através do nariz.  O aconchego dos espaços, misturado à música ambiente, geralmente erudita ou canto gregoriano, se unem à meia-luz do lugar e tornam o ambiente irresistível.

Ela passa os dias por ali, em meio aos livros e nessa atmosfera quase surreal, ajudando suas cinco funcionárias a receberem os que chegam admirados, alguns pasmados, pela beleza do lugar e a circunstância de encontrá-lo numa cidade tão pequena e aparentemente sem atrativos culturais. Uns dizem que o cenário é digno da Europa, outros afirmam que o espaço deveria ter sido construído em Porto Alegre ou em qualquer outra cidade que atraísse mais turistas. Por que aqui? Por que em São Francisco de Paula? Ela responde convicta: “Eu tenho uma dívida com esse lugar, tudo que aprendi veio daqui”.

Os livros a acompanham desde sua infância. Luciana Olga Soares, 68 anos, encontrou a paz que buscava e um sentido para sua vida quando inaugurou a Miragem, em 4 de outubro de 2000. A data, não por acaso, caiu no Dia Mundial dos Animais e no aniversário de sua avó paterna, Rosalina de Andrade Soares, segundo ela talvez a pessoa de sua família que mais a amou. Na época a Miragem ocupava apenas duas salinhas, uma na entrada e a outra nos fundos de uma galeria situada bem no meio da avenida principal da cidade. No espaço ao fundo dessa galeria ficava a Miragem Infantil, ambiente dedicado os pequenos, mas que deleitava até os grandes.  Em 15 de março de 2008, o novo espaço foi inaugurado, no dia do aniversário de Luciana, que vibrou por ficar em segundo plano a comemoração do seu nascimento. Difícil explicar para alguém que não conhece o que é essa livraria. A Miragem é mais que um espaço físico, é um acervo da alma. “Estou mostrando tudo aquilo que tinha dentro de mim e ninguém nunca acreditou”, admite a proprietária.

Essa senhora que idealizou tudo durante anos é a responsável pela livraria ser o que é hoje. Na seção infantil, um mundo à parte para os pequenos, um dos locais mais admirado da casa, não entra nenhum livro ou brinquedo em que apareçam imagens de animais aprisionados ou maltratados e, seguidamente, fornecedores desse segmento, desavisados, recebem a recusa de seus produtos, porque Luciana escolhe cada livro com muito cuidado. Ela diz que a medida é para garantir que as crianças possam ter contato somente com o que considera ser o correto, que não se incentive os maus-tratos aos animais. “Não posso permitir isso, eu estaria sendo cúmplice dessa escolha”. No restante da livraria, a proprietária entende que não pode ter controle. “Os adultos sabem o que estão fazendo, eu não sou responsável por eles, mas as crianças eu tenho o dever de contribuir com a educação delas.”

Luciana é uma senhora de estatura média, pele pálida, cabelos curtos e grisalhos, o nariz fino sustenta os óculos de armação redonda. E é através das lentes deles que um olhar profundo parece buscar o interior da pessoa com quem conversa. É muito observadora. Veste-se de maneira discreta, detesta cores berrantes. Sempre com um colete de malha bege, que traz o nome da livraria bordado em marrom, calças jeans e uma bolsa a tiracolo, também marrom, ela percorre as ruas da cidade acompanhada de Pretinha, uma vira-lata adotada e assustada pelo tratamento do passado, que ganhou o paraíso quando foi recolhida por Luciana há cerca de 10 meses. Pretinha é só uma representante, a “adoradinha da dona”, como a livreira costuma dizer. Na sua casa no campo, na localidade do Faxinal, RS 235, a 18 km do centro da cidade, a livreira tem outros 32 cachorros, todos adotados.

A criança que não era esperada

Terceira filha do casal Sylvio de Andrade Soares e Ondina Soares, a “Dona Onda”, como era conhecida por todos, Luciana cresceu em uma família abastada, com muitas colônias de campo em São Francisco de Paula. A mãe de Luciana sofria diversos abortos espontâneos, e talvez por isso sentisse a necessidade de ter os filhos que a natureza não lhe permitia. Adotaram primeiro Neusa Mary Pacheco (que anos depois daria nome a uma escola estadual de Canela), quando esta tinha cerca de três anos e a mãe biológica da criança, irmã mais velha de Dona Onda, ficou doente. Depois adotaram Nize de Lourdes Pacheco, irmã de Neusa, quando tinha apenas três meses. Criaram ambas como filhas. Porém, o que ninguém imaginava um dia aconteceu: Ondina conseguiu manter uma gravidez até o final e, em 15 de março de 1945, às 10h30min, no quarto 27 do Hospital Beneficência Portuguesa, em Porto Alegre, nasceu pesando 1.750 kg o bebê que o casal achava que não teria mais.

A devoção aos animais

Nas primeiras horas de vida Luciana era muito fraca. Mesmo depois de deixar o hospital, ainda era um bebê com saúde debilitada. Não mamou uma gota do leite da mãe, vomitava tudo que lhe ofereciam. Com três meses de vida não pesava dois quilos, então o pai, aflito, pegou a vaca mais sadia que tinha no rebanho, tratou-a bem e deixou-a ao dispor da filha, que sobreviveu graças ao alimento fornecido pelo animal. Talvez aí tenha iniciado a profunda relação com os animais e o campo. Tal relação seria confirmada tempos depois, quando, aos dois anos Luciana sumiu da vista dos pais e foi encontrada no chiqueiro, dormindo junto dos leitões.

Hoje, há 15 anos Luciana não come carne. Já tinha vontade de largar o hábito quando, certa vez, visitou uma família que tinha moças lindas e muito saudáveis. Eram vegetarianas. A partir daí ela entendeu que não teria deficiência de nenhum nutriente se seguisse uma dieta balanceada, mesmo sem comer a proteína animal. Desde que tornou-se vegetariana, percebeu que sempre olhava o gado e desviava o olhar. A partir de então, conseguiu fixar os olhos nas vacas, sem desviar. Trocou o prazer de comer carne pelo prazer da alma leve.

O que a faz feliz agora é a tranquilidade que traz consigo mesma, muito diferente da Luciana do passado. Essa calma muito se deve ao sentimento de saber que nunca foi ruim para quem foi bom para ela. Orgulha-se em contar nunca maltratou os animais, seres indefesos.

Os irmãos

Depois do nascimento de Luciana, vieram mais dois filhos adotivos: Reni Guilherme Pereira, que era filho de uma empregada da casa, a Glória, e foi criado pelos patrões como se fosse filho deles – por mais que  isso desse margem a muitos comentários de que o menino era filho de Sylvio, tempos depois ficou provado que não e o já adulto, Guilherme passou a frequentar a casa do pai, um antigo namorado de sua mãe; e, por último, Silvana Pacheco Manique, filha de Neusa e Theodolindo Manique, que após o casamento seguiram morando no casarão do Faxinal com a criança.

Neusa morreu de repente, aos 34 anos adoeceu e em poucos dias o Paratifo, uma doença infecciosa, afetou seu coração. Silvana tinha três anos na época, então Luciana, com 18 anos, passava os dias a consolar a mãe, que quase enlouqueceu, e ajudava a criar a irmã adotiva, o que a distraiu da própria dor pela ausência da amizade da irmã mais velha.

Guilherme faleceu aos 46 anos, vítima de um acidente de carro há cerca de oito anos, na rodovia que liga os municípios de Cambará do Sul e São Francisco de Paula. Luciana tinha por ele um sentimento de carinho e cumplicidade. “Ele tinha um coração de ouro, mas nunca conseguia mostrar tudo de bom que tinha dentro dele”, comenta. Guilherme era alcoólatra, quando bebia fazia sofrer toda a família. “Ele me amava e ao beber queria me matar”, lembra entristecida.

Com as duas irmãs vivas a relação é bem diferente. Com Nize, que hoje tem 72 anos, desde o início a convivência foi conflituosa e segue até hoje, nem Luciana nem ninguém da família tem notícias dela. A última informação que tiveram foi que deixou o município de Canela para morar em Porto Alegre. Nize nunca pisou na Miragem, não sabem seu telefone, nem seu endereço, sabem apenas que casou-se, mas não com quem.  Ela era uma jovem linda que todos queriam por perto. Luciana, ao contrário, se sentia feia e desajeitada. Com a morte do pai, retornou de Porto Alegre, depois de viver anos por lá atuando como professora. “Depois que morreu o pai de Luciana, que era quem equilibrava as coisas, ficou um ambiente pesado”, recorda a irmã, Silvana.

As pessoas diziam para Nize que quando ela voltasse lhe tomaria o lugar. Havia também a preocupação de ter que dividir o que antes era só dela. Quando Luciana nasceu, Neusa e Nize já estavam lá. Era ela que não devia estar. Sempre foi esse o sentimento que guardou consigo. Com Silvana a relação sempre foi muito boa. “Na minha infância a Luciana foi um pouco ausente porque vivia em Porto alegre ainda, mas desde quando voltou sempre nos demos muito bem”.

Uma relação difícil

A mãe, Dona Onda, segundo conta a livreira, tinha uma carência afetiva muito grande, com a qual não soube lidar e que acabou interferindo no trato com a única filha biológica. A relação das duas sempre foi muito difícil, desde sua infância se sentiu excluída. Para a filha, Onda não sabia transmitir afeto, porém com as outras pessoas era agradabilíssima, muito sociável. “A Luciana sempre se sentiu rejeitada, justo ela que era a única filha biológica deles”, comenta a irmã, Silvana.

Talvez o maior acerto da vida de Luciana tenha sido quando aos 28 ou 29 anos teve uma conversa definitiva com a mãe, disse tudo o que pensava, como se sentia. A partir daí o diálogo entre as duas melhorou bastante.

Ondina era uma mulher bela, foi Miss Taquara em 1925. Apesar disso, sentia muito nunca ter podido estudar. As irmãs de Luciana também eram lindas e como a mãe, extremamente agradáveis. Chamavam a atenção por onde fossem, pela beleza, simpatia e educação. Até hoje comenta-se que Nize era a jovem mais atraente da cidade na época.

Como não era bonita, e tão tímida que não atraía os olhares pelo carisma, Luciana decidiu buscar a atenção dos outros para si usando roupas esfarrapadas, remendadas, e tendo atitudes que para época escandalizavam os demais.

Sentia-se muito só. Sofria. Comparada às irmãs, diziam-lhe que não sabia fazer nada direito. Acostumada a nunca receber atenção, Luciana ficou arredia. “O que era pra ela, ela não entendia como sendo para ela”, comenta Silvana. Segundo Luciana, talvez a única coisa que fazia e a família gostava, era tocar gaita ponto (ou botoneira, como é conhecida em outras regiões). Tinha um repertório curto, cerca de 30 músicas, que aprendeu com um professor chamado Fabian, e tocava para os de casa, mas logo vinham as comparações e Luciana se sentia desanimada.

O silêncio, as paisagens cobertas do verde do campo, as noites poéticas, o vento, o fogo da lareira, a luz do lampião e das velas, durante os quatro anos que não tiveram energia elétrica no Faxinal, foram muito importantes para Luciana. “Esses fatores me empurraram para a introspecção, criaram os valores que me sustentam até hoje”, conta.  Passou desde cedo a escrever. E essa foi uma grande ajuda para si mesma, pois para escrever ela necessitava organizar as coisas que sentia, saindo de dentro pra fora. Conseguia então exteriorizar as angústias e devaneios. Aos 11 anos fez seu primeiro escrito.

Apesar de para as pessoas próximas, sentir que não tinha préstimo nenhum, Luciana conta que poderia ter sido bailarina de tango, jóquei ou caminhoneira. Dançava com suavidade, montava cavalos e dirigia muito bem. Tinha talento para todas essas funções, mas os de casa sempre a viam por meio dos seus defeitos e das habilidades que lhe faltavam. Acostumou-se a ser criticada, zombada, excluída.

Uma criança triste, perdida na própria imaginação

Certa vez, recorda com o olhar distante, quando estava na segunda série, a professora ensaiava uma apresentação de dança. No primeiro passo que Luciana deu a mestre enxotou-a do palco dizendo que o coleguinha que dançava com ela não estava querendo mais porque ela era muito desajeitada. “Eu nunca esqueci essas palavras”, confessa.

Outra situação, desta vez no ano seguinte, quando estudava na terceira série. Estava numa aula de leitura, a professora havia pedido que os alunos escrevessem uma pequena história na aula anterior. Todos as fizeram estruturadas de acordo com a capacidade de uma criança de oito ou nove anos, porém Luciana escreveu um texto com sentido, início, meio e fim, respeitando as margens e com marcações de parágrafos e travessões. Ao se dar conta disso a professora, espantada, comentou sussurrando com uma colega de profissão o quão adiantada a menina estava, ela nem sequer havia ensinado essas regras ainda. As duas professoras, admiradas, seguiram conversando aos cochichos, porém, nenhuma delas elogiou ou simplesmente falou sobre o fato em voz alta para a classe. “Eu era uma criança, precisava de um elogio. Eu precisava que alguém dissesse que eu sabia fazer alguma coisa, mas nada foi dito”, lembra.

Lia muito desde pequena, lia compulsivamente. Talvez por incentivo dos pais, que lhe presenteavam com livros, e, principalmente pelo exemplo de Sylvio, que mesmo não tendo instrução formal, lia todas as noites. Era um homem aberto, não tinha preconceitos, numa época em que ser preconceituoso era socialmente aceitável. Sylvio era muito apaixonado pela mãe de Luciana. A filha biológica tinha uma profunda admiração pelo pai, com quem conseguia uma relação melhor. A estima pelos tempos de outrora, que Luciana carrega até hoje, vem dele. Sempre dizia que pessoas realmente inteligentes cultuavam o passado. Luciana conta, saudosa, que seu Sylvio, pessoa lá de fora, adaptado aos costumes da terra, mas com uma percepção de mundo muito ampla, também falava que “tradicionalismo não é grossura, é refinamento.”

Luciana cresceu em meio às sombras de antigamente. Nove anos antes de nascer, uma tia, Eunice Soares, na época com 24 anos, suicidou-se com um tiro no peito, em seu quarto, no casarão da família. Ela era uma jovem moderna para época, pilotava aviões, tinha uma personalidade forte, incomum para as meninas daquele tempo. Luciana cresceu ouvindo o quanto se parecia com a tia. Dessa forma, inconscientemente tentava assumir a personalidade da morta, numa tentativa de ser aceita. Sentia muita falta de ar, tentava preencher seu vazio buscando ser quem não era. Foi então que seus pais perceberam que a menina precisava de ajuda e levaram a filha num psicólogo.

Num culto à memória, até hoje o quarto da tia está intacto na casa de Luciana, que está sendo restaurada para voltar a ser exatamente como antes.

Assim, desde criança Luciana transferiu seus conflitos para a leitura. Numa noite em que dormia com a avó Rosalina, a qual, diferentemente da família, nutria muito afeto pela neta, a menina lia um livrinho de histórias infantis pela milésima vez, quando a avó ordenou que apagasse o lampião. Ela insistiu para que não, porém era tarde e a idosa mesmo apagou a luz. Sem se abalar, Luciana continuou “lendo” a história, virando página por página, no tempo certo da narrativa, no escuro, porque sabia a história de cor.

Os tropeços da adolescência

Aos 17 anos, Luciana era uma jovem triste, carregada de rancores. Um dia caminhava pela rua e simplesmente seus músculos começaram a se contorcer. Ela ficou torta, não conseguia endireitar a postura. Alguns que passavam tentaram ajudar, mas de nada adiantou.  Os pais a levaram para o hospital e o único tratamento que recebeu foi ficar literalmente estendida em uma cama, ouvindo música erudita. Só.

Anos mais tarde, em uma consulta com um psicólogo ela soube que o que teve naquela ocasião foi uma Neurose de Conversão, espécie de transtorno dissociativo provocado, entre outros fatores, por intenso estresse. O médico disse ser um milagre uma pessoa se curar de um trauma como esse sem um tratamento profundo e específico.

Tentando buscar uma forma para se manter sozinha, sem depender dos pais, ainda com 17 anos Luciana foi até a cidade pedir emprego. Chegou a um restaurante e explicou ao dono que gostaria de trabalhar e podia ser em qualquer função, poderia lavar a louça. O homem olhou-a de cima a baixo e disse com desprezo: “Tu não acha vergonhoso tirar o lugar de quem precisa?”. “Eu fiquei sem chão”, admite. Naquele momento, Luciana entendeu que não conseguiria emprego simplesmente porque vinha de uma família rica, e para os outros seria um despropósito ocupar uma vaga que alguém mais necessitado podia aproveitar. Para ela o maior erro de sua vida foi não ter discutido com o dono do restaurante e tê-lo convencido do quão necessitada estava daquele trabalho e então deixar a cidade para trabalhar em outro local.

Teve o primeiro emprego somente aos 27 anos. Acostumada a ouvir de todos que “não prestava pra nada”, formou-se em história pela PUC, em 1970, e afirma: “aprendi muito pouco com a faculdade. Nela basta ter uma boa memória para decorar tudo. Aprendizado mesmo eu tive na vida”. Logo após formar-se, retornou a São Chico para ser professora de história da 5ª e 6ª séries do Primário (equivalente ao ensino fundamental), no antigo colégio de freiras, onde hoje funciona o Colégio Estadual José de Alencar, mais conhecido por “Normal”. Foi professora quatro anos no Grupo José de Alencar, depois um ano em Flores da Cunha, 15 anos em Porto Alegre e retornou para a José de Alencar por mais dois anos. Talvez aí Luciana tenha começado a entender que sim, sabia fazer – e fazia bem – alguma coisa.

A mestre

Os alunos eram apaixonados por ela. Era uma professora inovadora, convidava os estudantes a se interessarem pelo conteúdo através de tarefas diferenciadas. Levava teatro para dentro da sala de aula. Respeitava o que cada aluno tinha de diferente e mostrava essas diferenças como algo positivo na composição da classe. Conseguia chegar à alma deles, ajudava-os a se autoconhecerem e se descobrirem. “Ela era uma professora diferente do convencional”, conta Laura Rosana Martins, 52 anos, relações públicas, aluna de Luciana entre a sexta e a oitava série, na década de 70.

Um dos episódios mais marcantes para Laura, que na época era uma adolescente, foi quando a professora de História conseguiu o espaço do Fórum de São Francisco de Paula para fazer um júri simulado com uma encenação do Sistema Feudal. “Para a época aquilo foi incrível! Quebrou barreiras, a cidade inteira comentava. Nenhum outro professor havia tentado algo parecido.” A ex-aluna, que hoje reside em Porto Alegre, relembra com carinho as histórias com a professora. “Ela era o máximo!”, enfatiza. Luciana abria a porta de sua casa e de sua privacidade para os alunos, que a tinham como uma amiga. “Ela era o guru da turma”, lembra. Carinho e respeito eram as características de suas aulas. “Tudo isso me marcou muito até hoje”, afirma a RP.

Silvana, a irmã mais nova, hoje com 51 anos, também passou pela experiência de ser aluna de Luciana, na sétima e oitava séries do Primário, e recorda que a irmã era inovadora na sala de aula. “Ela levava atividades diferentes, dava aulas de uma maneira incomum para época”, recorda.

A fuga

Para fugir dos conflitos internos e do ambiente familiar, quando chegavam as férias, era só o tempo de arrumar a mala e colocar o pé na estrada. Com essa fuga dos problemas do convívio na casa, Luciana conheceu todos os estados do Brasil, exceto Pará e Amazonas, parte da Europa, quase toda a América do Sul, México, Panamá e muitos outros lugares, dando preferência para destinos históricos.

Sempre quando voltava trazia na bagagem uma louca saudade do campo, do casarão, dos animais. Se tivesse novamente que escolher um lugar pra viver, seria ali, naquela paisagem. Pensava isso todas as vezes que chegava de viagem.

Os espelhos

Nunca casou. Não teve filhos. É uma senhora solitária e cheia de recordações. Umas boas, outras doídas. Quando jovem não pensava em se casar, exceto quando um grande amor a fez ter a certeza de que queria ficar ao lado dele para sempre. Para ela, no casamento a mulher desempenhava o papel de mãe do marido, e isso ela não suportava nem pensar na ideia. Nunca mudou de opinião.

Luciana jamais pensou também em ser mãe. “Eu, com todos os problemas da minha infância, não poderia ser uma boa mãe. As pessoas devem fazer o que sabem, eu não saberia ser mãe”, reconhece. Mesmo aproximando-se da velhice, Luciana afirma: “Eu nunca me arrependi dessa escolha”.

                Teve vários namorados. Segundo ela, todos eram pessoas extremamente sensíveis e inteligentíssimas, os únicos que conseguiram ultrapassar a barreira do visível para adentrar a alma de Luciana. Eles foram capazes de enxergar além da máscara de amargura na qual se escondia. “Os poucos que me conheceram de verdade, o meu interior.”

                Não pensava em casamento, mas tinha certeza que queria viver ao lado dele: “Antoninho”, seu primo em segundo grau despertou, de uma hora para outra, um sentimento que fez a vida de Luciana ficar mais leve. Ela tinha 27 anos e ele 35. Conheciam-se e conviviam desde a infância, porém em dado momento perceberam que não mais poderiam viver separados.

Ele vinha de Caxias do Sul, de ônibus. Ela o esperaria de carro, na rodoviária de Porto Alegre, para então seguirem viagem, não sabiam para onde. Não importava. Desde que estivessem juntos, eles iriam para qualquer lugar. Ao descer do ônibus na rodoviária, Antoninho sentiu algo estranho na perna e caiu. Tinha trombose. Luciana levou-o para o hospital e dias depois estava bem, buscando Luciana na escola. Ao chegar na casa da cidade, enquanto ela arrumava a mesa do almoço, ele foi comprar pilhas para o radinho de Guilherme, que na época era um menino. Foi só o tempo de chegar do outro lado da rua e Luciana pôde ouvir de casa os gritos de socorro de quem passava no momento. Antoninho sofreu um infarto, foi o quinto. Dessa vez não poderiam mais ficar juntos.

Depois da morte de Antônio, Luciana viveu cinco anos como se estivesse anestesiada. “Minha vida era fazer tricô e comer bergamota”. Engordou 19 kg e também queria morrer. “Eu nunca quis casar, mas eu tinha certeza que viveria com ele pra sempre”. A relação com primo despertou o que Luciana tinha de melhor, foram apenas três meses e meio que deixaram marcas intensas. Luciana explica que as pessoas são como espelhos, cada um refletindo o que o outro é. Se o espelho é pequeno, refletirá a outra pessoa de forma pequena. “O Antoninho era um espelho gigantesco”, comenta com os olhos marejados.

Ela mantinha relações muito profundas com os namorados. Tanto que, 18 anos depois de não ter notícias de um deles, cerca de cinco anos após a morte de Antoninho, em desespero, precisando de alguém que a amparasse, ela descobriu o número e ligou para um antigo namorado. Bastou dizer “alô”, o homem identificou sua voz. 15 minutos depois, foi ao encontro dela e os dois conversaram como se tivessem se visto na semana anterior. “Todos os meus amores foram grandes”, recorda emocionada.

A mesma profundidade é percebida nas amizades. Certa vez, em uma viagem, ao saber do falecimento dias antes do pai de uma grande amiga, que também não via há muitos anos, ela decidiu retornar e ir visitá-la, mesmo sem avisar, levando seus sentimentos, pois ela era muito apegada ao pai.  Chegando lá, viu na janela da casa uma velhinha olhando para o quintal, era a mãe da amiga – a viúva. Quando Luciana entrou pela porta a senhora parou emocionada, retirou os óculos, pois as lágrimas jorram sobre eles, e apertando-a em um abraço disse entre soluços: “Eu sabia que tu virias. Eu estava te esperando”. Transcorrido um tempo, na hora da despedida é a amiga que surpreende pela consideração por Luciana. Entrega um embrulho com uma pedra, que foi um objeto bastante significativo e de grande apreço do seu pai morto. A pedra está até hoje guardada na casa de Luciana. “Eu jamais esquecerei esse gesto de carinho.”

A despedida de uma relação conflituosa

Já na maturidade de Luciana, quando dona Onda tinha então 87 anos, adoeceu. A professora largou tudo para cuidar da mãe, ficava todos os dias junto dela. Era câncer no intestino. No sofrimento, amedrontada pela doença, e talvez relembrando os tempos de infância da filha e a relação difícil que sempre tiveram, ela pergunta: “E se tu me deixa?”. Com juras de jamais deixar a mãe anciã, Luciana confortou-a.

Transcorrido certo tempo, nos últimos minutos antes de morrer, Luciana conta com uma expressão de orgulho, misturado a uma ponta de melancolia, que ela e seus irmãos estavam reunidos em torno da mãe. Então Dona Onda olhou para a filha biológica e repetiu cinco vezes: “Muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada, muito obrigada”. “Ela repetiu assim mesmo, cinco vezes”, garante Luciana, indicando com os dedos das mãos.

Dos livros, uma vida

A solidão fez-se mragem

Em São Francisco de Paula, pra qualquer pessoa que se pergunte, todos sabem quem ela é e terão uma opinião na ponta da língua. A “Luciana da Miragem” é idolatrada por uns e causa estranhamento em outros. Para muitos é somente “aquela louca que construiu um castelo no meio da cidade”. Chegam a dizer que ela vive enclausurada dentro do “castelo”. Mas não é verdade, Luciana está sempre pela rua, entre uma ida ao banco e outra, ela, com seu andar vagaroso, como se estivesse perdida num mundo que não é o dela, é seguida pelo barulho das patinhas de Pretinha ao tocar o calçamento da Júlio.

Segundo sua irmã Silvana, “o mundo da Luciana sempre foi os livros, lia muito, ela dava coisas pra gente ler, vivia presenteando com livros”.

Dentro da livraria, ela é a anfitriã mais dedicada. Acompanha os visitantes, conta um pouco sobre cada espaço que compõe a Miragem que criou, explica curiosidades da cidade, indica lugares para turistas, enfim… estabelece uma relação de carinho e confiança com os clientes. Que sempre, como ela pede, saem por aí dizendo que São Chico tem livraria. Não raro, eles tornam-se amigos.

Hoje, a felicidade dela é definida pelo convívio com os visitantes da livraria e com os seus cachorros e a pureza deles, que, se somados desde quando começou a adotar, seriam hoje 180. Em sua casa, no Faxinal, os animais desfrutam de, além dos cinco espaços dedicados a eles, o campo todinho para correr e brincar.

O que ela lê? Luciana admira a arte de escrever, como ela define. São referência para ela Machado de Assis, Cyro Martins, Stefan Zweig e os russos Tchekhov, Dostoiévski e Tolstói, entre vários outros. Atualmente está lendo “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, e afirma: “o importante não é ler muito, é ler bem”.

Bem afastados do Goethe, do Proust, da Virgínia Woolf,do Graciliano Ramos e do Erico Veríssimo, há livros escondidos, numa estante isolada. Perto da saída para a Casa de Chá, uma plaquinha indica, em vez do gênero, o escrito: “livros da moda”. A dona afirma que se sente desconfortável com eles, pois só gostaria de oferecer uma literatura mais elaborada. “Quem quiser os ‘ 50 tons de cinza’ nós temos aqui, mas estes livros não são a cara da livraria. A cara da Miragem é a boa literatura”, declara. E entrega: “nunca li nenhum destes livros da moda, prefiro os clássicos”.

Um livro que recomenda e que sugere seguidamente como presente é “Cartas a um jovem poeta” de Rilke. Desse livro, ela lembra um episódio curioso. Numa tarde movimentada, naquelas que todos os ambientes da livraria parecem virar um só e a aglomeração de gente é tanta que a saída é ir para o pátio interno, Luciana atendia uma moça que procurava um presente para um médico. Pediu sugestão para a livreira que indicou o livro de Rilke, numa versão de bolso. Ao ver o preço, cerca de R$ 9,00, a jovem olhou com desdém e perguntou se Luciana não poderia indicar algo melhor, aquilo era muito simples. A moça não entendeu que o preço nada tinha a ver com a qualidade da obra, muito menos a velha história de não julgar um livro pela capa.

A Miragem Livraria ainda causa emoção e encantamento na dona, não raras vezes ela vai até a frente do prédio e volta dizendo entusiasmadamente às funcionárias: “mas é bonita esta livraria!”. Além disso, muitos momentos inesquecíveis ocorreram lá, como o lançamento da nova edição do seu livro, que dá nome ao espaço. O “Miragem” é uma coletânea de seus poemas e escritos que datam desde a infância da livreira. A primeira edição foi lançada em 1999, um ano antes da livraria nascer. Em 2010 a obra foi reeditada e recebeu imagens, em sua maioria fotografias da fazenda no Faxinal, do casarão da família e de parentes. Também apresentou algumas cartas que Luciana escreveu, hábito que mantinha com afinco. O livro de 234 páginas foi reeditado pela Editora Dolika-Afa. Luciana o classifica como “prosa poética”, a partir da definição que uma professora de português deu certa vez.

Outro momento inesquecível para ela e mais recente foi a inauguração do sebo, no terceiro andar da livraria. Ao som de ‘Luzes da Ribalta’, tocada no serrote (instrumento usado com arco de violino ou viola) por Paulinho Pires, no dia 5 de outubro deste ano, Luciana pôde exaltar sua alegria.

“Antes de ser comerciante, sou apaixonada pelos livros”, afirma

A livraria surgiu da necessidade de Luciana provar que podia fazer algo realmente bom, mostrar todo seu potencial. Por isso ela não abre mão de fazer tudo bem feito, ter os melhores livros, oferecer os melhores e mais bonitos produtos e o melhor atendimento. Muito se deve às suas funcionárias, que em sua maioria a acompanham há anos. A funcionária mais antiga, talvez aquela que mais conheça a livreira, é Maria das Graças Antunes de Oliveira Silva, a “Cota”, 50 anos. Está com Luciana desde quando a Miragem era na galeria, no final do ano 2000. Acompanhou toda a transição da pequena livraria, para o grande empreendimento e atrativo turístico que acabou se tornando hoje. Foi sua primeira funcionária.

Cota viveu, junto com a chefe, momentos importantes que ficaram marcados na memória de Luciana e na história da Miragem. E tenta explicar o fato da Miragem ser o que é hoje resumindo o que foi a vida de Luciana. “Ela era uma criança sozinha, que ouviu muitas coisas. Coisas ruins. Foi tratada sempre com indiferença, teve de se superar, por isso fez essa livraria grande, magnífica. Para mostrar que pode, sabe? Que é capaz.” E reforça falando sobre as dificuldades que uma mulher empreendedora, sozinha, e que sabe o que quer, enfrenta. “A Luciana é uma mulher à frente do tempo dela.”

No início as duas tinham uma relação pessoal mais próxima, jantavam juntas, conversavam mais. Hoje essa relação se restringe mais ao ambiente profissional. “Mas ela sabe que se precisar de mim para qualquer coisa, eu estarei lá, e vice-versa”, justifica. Essa disponibilidade ficou comprovada até nas vezes que Cota saía com Luciana para tratar e cuidar dos cachorros da rua.

A livreira, por querer fazer tudo perfeito, dá muita atenção aos detalhes. Uma pisciana perfeccionista, com ideais firmes. Mas ela tenta esclarecer: “Tudo só está bem quando é o melhor que eu posso fazer”. Tal perfeccionismo gera diversas manias. Seguidamente repreende uma funcionária que esquece que as canetas devem ser guardadas viradas para baixo e os lápis para cima. “A Luciana é cheia de manias, acho que elas são como uma fuga. Talvez sejam o resquício de algum trauma do passado que ficou”, conta Cota. Já sua irmã Silvana enxerga a atenção aos detalhes de outra maneira. “Ela percebe tudo, capta tudo. Nada escapa a ela”, declara.

A chefe e a funcionária são no fundo duas mulheres parecidas em muitos aspectos. Mulheres de ideias firmes que às vezes divergem. Uma parceria de mais de uma década que tem resultado em bons frutos. Cota lembra com graça as palavras da chefe: “A Luciana diz que eu aturo ela, mas se eu aturo, ela também me atura”, brinca.  E acrescenta: “Meu jeito de demonstrar que gosto dela não é bajulando”.

A vendedora já presenciou várias situações com pessoas que passaram pela vida da livreira, e demonstra sua preocupação com Luciana: “Por não ter com quem dividir a vida, ela fica à mercê de pessoas que se aproximam por interesse”. E completa, falando dessas pessoas: “É muito fácil rir para uma pessoa e quando ela virar as costas ficar falando dela. Eu respeito a Luciana”.

Cota considera que, por causa do passado de angústias e sofrimento, a dona da livraria às vezes permita que pessoas não tão sinceras estejam por perto. Porém, se em algum momento pessoas assim se acercam de Luciana, por outro lado, a relação das duas é de muito respeito e confiança. “Ela é uma pessoa muito bondosa, ajuda as pessoas que precisam, serve aos outros e às vezes fecha os olhos para algumas situações, o que acaba prejudicando ela”, confirma Cota.

O futuro

Entre suas perspectivas para um futuro próximo está cuidar dos seus 33 cachorros, dois quais tem saudade por estarem no Faxinal e ela vivendo no seu apartamento em cima do Salão de Eventos da Miragem, enquanto o casarão é restaurado. Ela também não dorme mais lá pela insegurança. Por medo da onda de assaltos que acontece na cidade, optou por não ir diariamente até a fazenda.

Luciana é uma pessoa empreendedora e realizadora. Na sua mente sempre tem espaço para uma nova ideia, um novo projeto. Agora o próximo é completar o plano inicial da livraria, construindo no terreno ao lado da Miragem uma réplica da primeira Igreja da cidade, feita pelo capitão Pedro da Silva Chaves, fundador de São Francisco de Paula. Pretende também, criar um memorial português para valorizar o povo que tem a cultura mais presente na cidade, e um espaço com fogo de chão e uma estrebaria. “Quero trazer um cavalo pra colocar uns dias ali e deixar um cheiro de galpão”, conta, animada.

Para realizar todos os objetivos que traçou foi preciso uma cabeça nas nuvens. Luciana é dona de mil ideias, sempre “inventando moda”, ela guarda ainda muita imaginação para, quem sabe um dia, realizar. Acostumada a concretizar os sonhos originados na sua mente hiperativa, ela lembra uma frase de Tolstói. “A gente pode até ficar pelo meio do caminho, mas o horizonte tem que ser as estrelas.”

E esse horizonte parece não ter fim. Um de seus sonhos é a construção de um condomínio com casas subterrâneas, cobertas de campo. Viu essa técnica na Alemanha e na Argentina, e aproveita para refletir sobre uma questão que tem lhe tirado o sono. “Não sei se será possível, porque hoje em dia os ambientalistas estão beirando o ridículo com exigências absurdas e infundadas. Antes tínhamos a paisagem mais linda, se respeitava o ecossistema”, critica.

A revolta dirigida aos ambientalistas se origina numa questão amplamente debatida na região em que o município está inserido, os Campos de Cima da Serra, da qual Luciana é a favor – a queima (ou melhor, a “sapecada”) de campo.

Junto com outros moradores do campo, Luciana escreveu o “Manifesto Serrano”, documento que apresenta o ponto de vista de quem é a favor dessa prática histórica, mas que foi proibida e hoje só é possível realizar tendo uma licença específica, que depende de vários processos burocráticos. “É uma lei insensata, terminou com a paisagem, os animais estão morrendo”, afirma.

As pazes com o passado

Luciana construiu sua história a partir das amarguras e da solidão que a vida lhe impôs. Com a Miragem, adquiriu a paz que sempre sonhou ao provar para todos, e principalmente para si mesmo, que podia fazer algo muito bom. Ainda acredita nas pessoas, apesar de tudo, não guarda mais mágoas. Dona de uma personalidade forte, polêmica e com opiniões tão imutáveis quanto seu caráter, por vezes choca quem não conhece seu jeito. Acostumou-se a ouvir críticas e hoje as recebe bem, e admite: “Eu era uma pessoa muito difícil de entender”.

O modo gentil de tratar os outros e a fala articulada, quando aborda de repente um cliente dentro da loja –  “meu amigo, já viste este livro?” –  deixam claro que Luciana firmou as bases de sua vida e, enfim, pôde se encontrar, a partir do trabalho e da persistência. Ela entende que um negócio só pode dar certo quando se preocupa com o bem comum. Talvez sejam por isso todas as mensagens carinhosas de visitantes do mundo todo, registradas nos 12 livrões preenchidos desde que a Miragem mudou-se para o novo endereço.

Ainda cultua o passado, como prova a composição da livraria, cheia de objetos que remetem a outras épocas e os livros do sebo, muitos com dedicatórias de desconhecidos que talvez já deixaram de existir. Mas agora ele não a incomoda mais. Ainda está tentando entender esse mundo louco que a cerca. “A leviandade que caracteriza nossa época e a pequenez do nosso tempo são atrozes”, afirma com convicção.

“A Luciana é uma pessoa extremamente sensível, anônima, não vê necessidade de aparecer”, esclarece sua irmã Silvana. E é esse desprendimento, mesmo depois de construir sua maior obra, que a torna uma pessoa única. A Miragem não poderia ser outra coisa que não um ambiente transcendente. Surgiu de emoções conflitantes, sentimento de rejeição e de uma profunda solidão. Transformou a angústia de quem a sonhou numa razão para encarar a vida e deixar de lado os monstros do passado.

Não se sabe o que será da livraria depois que Luciana partir, ninguém se arrisca nem a pensar. Pois “a Miragem é ela, ela é a Miragem”, como bem disse Cota. O que se sabe é que, não importa o que aconteça, a Miragem sempre fará parte da vida daqueles em que a imaginação não cabe dentro de si.

A solidão, que tanto a atormentou a vida toda, a mesma que a fez buscar em seu interior a resposta para o que lhe angustiava, não existe mais. Virou Miragem.

*Perfil originalmente escrito em outubro de 2013.

Vídeo

Nomofobia: você sabe o que é?

15 dez

Reportagem elaborada para a disciplina de Telejornalismo II, sob orientação da professora Luiza Carravetta.
Jornalismo Unisinos 2014/2- São Leopoldo- RS.

Gepetos da vida real*

30 out
Quem são aqueles que encantam multidões com uma das mais antigas formas de arte e entretenimento: o teatro de bonecos
Por Karine Klein e Jacqueline Santos

Produzir as engrenagens que movimentam o país, que constroem ônibus e aviões. Ou viver indo e vindo nesses aviões para vender esses mesmos ônibus pelo Brasil. Ambos podem ser bons empregos. Mas, quando o trabalho começa a desgastar sua vida, a ponto de você não conseguir acompanhar o crescimento do filho, ou o ambiente profissional é desmotivante e pouco amigável, o que fazer? A maioria das pessoas, apegadas – ou acomodadas – à estabilidade financeira, se manteria no emprego, acumulando frustrações e estresse.  Mas um homem decidiu largar tudo para se sentir livre, mesmo se arriscando a ficar sem dinheiro. E anos depois, convenceu uma mulher a se aventurar pelo mesmo caminho.
A rua íngreme de chão batido nem parece Gramado. Fica a muitas curvas do Centro e de suas lojas de chocolate. Ao lado de uma floresta por onde o vento assovia entre eucaliptos, há uma casa de madeira simples, com um Opala verde, de R$ 8 mil, na frente. 

O Opala que leva Beth para todos os lugares

As cadelas Preta e Titânia fazem as vezes de campainha, latindo e também pedindo carinho. Nos fundos, estão espalhadas armações de ferro e bolas gigantes de isopor. 

Armações e sobras de cenários




A cabeça bege e desbotada de um cavalo de gesso recepciona quem chega. Não fosse tudo colorido e impregnado de histórias, aquelas sobras dariam um ar de filme de terror ao pátio do casal que vive ali.

Recepcionando quem chega, o cavalo 


Lá funciona a oficina de bonecos. Atrás, um depósito guarda tudo que um dia já foi usado em cena. Personagens que conquistaram a aposentadoria, mas dos quais seria impossível se desfazer. Eles têm alma. O espaço é pequeno e entulhado de cenários, cartazes de espetáculos e títeres, criando uma mistura pouco provável. Ali, abraçadinhos, estão o Pinóquio e o Coelhinho da Páscoa. Um enorme gato da Alice no País das Maravilhas, com olhar sarcástico e enormes dentes, está de frente, ameaçador, para uma rena do Papai Noel. Convivem – ao que parece – em perfeita harmonia.

Abraçadinhos


O olhar sarcástico do gato
Sobre a porta da oficina, a placa indica: Teatro de Bonecos do Grupo Só Rindo. É onde trabalham os bonequeiros Nelson Haas, 42 anos, e sua mulher, Elisabeth Bado, 41 anos. A aparência despojada – cabelos castanhos longos e cacheados, abrigo de tactel respingado de tinta branca e surradas alpargatas – diz muito sobre a personalidade de Nelson, e também sobre quem o cerca atualmente, sejam amigos, familiares ou visitantes desconhecidos. Não são pessoas superficiais e materialistas a ponto de julgar alguém pelas roupas. Ele é um sujeito tranquilo e dinâmico ao mesmo tempo, que deixa todo mundo à vontade. Ao seu lado, a acolhedora Beth oferece chimarrão com uma voz mansa, de quem adquiriu calma depois que teve muita pressa nessa vida.

Nelson explicando a posição do cenário no palco


No ateliê, o casal tem a ajuda dos aprendizes Igor Foss, 17 anos, e Barbhara Brando, 19 anos. Igor é um adolescente de cabelos azuis, e também manipula as marionetes. “O Igor diz que o teatro de bonecos mudou a vida dele”, entrega Nelson. “É verdade. Eu era muito tímido, quase não falava, em público então… mas agora não sou mais”, confirma o rapaz.
Na oficina, o processo de criação


“Mario Netes”

As paredes da oficina são forradas com cartazes de espetáculos que promoveram ou participaram. Dezenas de bonecos estão espalhados. Nas paredes, nas janelas, dentro de malas, caixas, baús. Ao fundo, bem de frente para a porta de entrada ficam “Os Gigantes”, bonecos que são utilizados no desfile do Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela, que percorre as ruas da cidade. No teto, há uma cobra maior do que um carro e com muitos, muitos quilos. O bonequeiro explica que ela é muito pesada porque sua armação não pode ser feita de alumínio, pois este é maleável e na primeira manipulação deixaria o animal com outro formato, então, toda a estrutura é confeccionada com ferro.

Além dos títeres, os alunos são outra paixão do artista. Assim como o Igor e a Barbhara, muitos outros procuram o casal para aprender esta arte. De 2005 a 2008, Nelson ministrou aulas no projeto que criou “Bonequeiros Mirins”, na Fundação Cultural de Canela – FCC. Chegaram a atender mais de 300 crianças em 6 escolas do município. Porém, com o passar do tempo e o pouco investimento na área, ele decidiu que seu trabalho de criação não poderia estar vinculado somente ao local e resolveu montar seu próprio ateliê em casa.        

Desenhos deixados pelos alunos de Nelson e Beth


Sempre atualizado sobre este meio, entre um cigarro de palha e outro, Haas conta que já esteve reunido com o Ministro da Cultura há uns quatro anos, discutindo ações que melhorem a vida dos artistas brasileiros de teatro de bonecos. Constantemente em busca de firmar novas parcerias, ele afirma: “Vivemos numa ditadura cultural, a burocracia é o câncer do país”. Nelson fala com o conhecimento de uma pessoa que viajou o mundo com seus bonecos, conheceu a cultura e o processo de criação de vários lugares e ainda assim se surpreende que os editais de cultura de grandes patrocinadores só beneficiem uma pequena parcela dos que vivem de arte. Ele fala ainda sobre a má aplicação dos recursos nesta área no nosso país. “Cerca de 80% do dinheiro da cultura no Brasil vai para manutenção da estrutura, como cortinas, cadeiras, mesas, iluminação. É um absurdo.”

“Vivemos numa ditadura cultural”


Enquanto a conversa se desenrola, Beth resolve fazer uma surpresa. Ela e os dois alunos encenam improvisadamente um trecho do espetáculo que estão produzindo para o Natal Luz de Gramado: Cadê o Papai Noel?.
Dentro do castelo do vilão:
Homem Malvado (Beth):―Então você vai lá, entra e conta 1, 2 e dobra a direita. Sabe contar até 2?
Criado (Igor): Sim, sim. 1,2.
Homem Malvado (Beth):―Tá, tudo bem. Vai, vai, vai!
O criado sai correndo.
Homem Malvado (Beth):―Ai meu Deus, perdeu a peça! (sem querer Igor deixa cair no chão a cabeça do boneco). Não tem problema. (Nesse momento, os dois fazem uma pausa para recuperar a peça que caiu no chão).
Homem Malvado (Beth): Mas então Papai Noel (olhando para o lado, imaginando que o Papai Noel está trancado num canto), voltando à vaca fria, porque isso é um ensaio aberto, né? Uma obra livre. Você não vai atender as crianças este ano. Porque, nunca ninguém me ha convidado para uma ceia de natal…
(…)

Por entre os bonecos, um dos roteiros sendo construído


Na peça, o Papai Noel é sequestrado por um homem triste que nunca participou de uma festa de Natal, nem ganhou um abraço, muito menos presentes. O homem malvado vive em um castelo, é uma espécie de Conde Drácula com sotaque castelhano. Nesse trecho, ele contracena com o seu criado, um jovem de voz lânguida e pouco esperto, manipulado e interpretado por Igor. Bharbara acompanha no violão fazendo a trilha sonora da cena. O espetáculo está previsto para estrear no dia 03 de novembro.

Da precisão à arte
Nelson fazendo jus ao nome do grupo
Nelson está nesse ofício a mais de 20 anos. Nasceu em Porto alegre e com 5 anos mudou-se para Caxias do Sul. Aos 18 anos, para pagar as contas trabalhava como Torneiro Mecânico, mas não gostava do ambiente cheio de fofocas e intrigas. Ele diz que em todos os lugares têm fofoca, “mas no nosso meio, o Teatro de Bonecos, temos também bastante colaboração e amizade, isso é bem mais relevante, somos uma confraria mundial”. Depois, passou para o Controle de Qualidade, gostava de precisão e foi essa característica que transferiu aos bonecos quando deixou o emprego. Haas sempre gostou de teatro, música e literatura, e tem muitos amigos nesse meio. Seu pai era músico e também contribuiu para que ele crescesse inserido neste contexto.
Sua primeira experiência com teatro de bonecos foi em Caxias, com o grupo “Animando Bonecos”. Em 1989 mudou-se para Florianópolis. Lá, em 1991, criou com dois amigos a Produtora “Guernica Arte e Cultura”. Realizaram diversos espetáculos bem sucedidos no estado, porém, faliram com a chegada do Plano Collor. Em 1992, retornou para Gramado, fundou o grupo Só Rindo e, a partir daí, dedicou-se exclusivamente para o teatro, levando a arte dos bonecos por todo o Brasil e fora do país.

Beth brincando com a marionete de um ônibus, relembrando
os tempos de vida corrida quando trabalhava em uma montadora


Um reencontro, um amor e o teatro
Beth, curitibana, criada em Caxias do Sul, se apaixonou pela arte dos bonecos ao mesmo tempo em que se encantou por Nelson Haas, em 2004. Os dois se conheciam há algum tempo e se reencontraram na fila da 3ª Semana de Teatro de Bonecos, em Canela. Ela era executiva da Marcopolo e viajava pelo país vendendo os produtos da marca, com um ótimo salário e grandes possibilidades de promoção. Porém, sua vida corrida não lhe permitia ter tempo para… viver.  Então, Nelson lhe apresentou o teatro de bonecos e Beth decidiu largar tudo para ficar mais perto da filha Diana, na época pouco mais que um bebê, e se aventurar nessa história de amor e arte.

Canela: uma fábrica de fantasia

A tradição bonequeira em Canela é bastante desenvolvida. Por isso ganhou um Festival dedicado a essa arte. O Festival Internacional de Teatro de Bonecos é um dos mais importantes eventos do gênero na América Latina, com companhias do mundo todo participando. Neste ano, chegou a sua 25ª edição, após quase ter sido cancelado por falta de recursos.

Crachás dos diversos espetáculos que o casal participou


Tiago Melo, 35, curador do Festival, compara o problema financeiro a uma bola de neve e explica que o revés começou entre 2007 e 2008, quando uma empresa de telefonia desistiu de patrocinar o evento na última hora, gerando uma grande dívida para o Festival. A conta levou cinco anos para ser quitada. “Peguei a bomba no final”, Melo ri aliviado. Para voltar à grandiosa forma anterior à crise, a expansão do Festival depende dos projetos de captação de recursos e patrocínios. O curador pondera que não há um planejamento em longo prazo e que o trabalho é feito ano a ano de acordo com as verbas que recebem.
Sacola plástica, fita crepe e habilidade


Pulando dos bastidores para a primeira fila do teatro, Tiago revela seu lado espectador. Sobre a experiência de assistir um espetáculo do Grupo Só Rindo, ele cita a parte que mais lhe chama a atenção: os anjos feitos de sacolinhas plásticas. “Eles são encantadores pela simplicidade”. A admiração destinada aos anjos também se estende ao seu criador. “Para mim, o Nelson Haas é a maior figura do teatro de bonecos na Serra gaúcha. Ele é um entusiasta, acredita no que faz”, exalta Melo.

Anjo de sacolinha plástica: o encanto pela simplicidade


Quem faz o Festival de Bonecos é a Fundação Cultural de Canela, com recursos das leis de incentivo e da prefeitura. Em 2013, o evento atraiu 9 mil pessoas, menos da metade do seu recorde de público – 25 mil, em 2008. O festival reúne artistas de diversos países, mobiliza toda a comunidade, com apresentações em teatros e nas ruas, e é um dos maiores orgulhos de Canela. Tendo esse conhecimento, a prefeitura e a FCC pretendem realizar em 2014 diversas oficinas nas escolas e uma mostra de bonecos paralela ao Festival. Também se tem intenção de trabalhar com os artesãos do município.

Como nascem os bonecos

Entre tantas criações Haas confessa: “é muito bom brincar de Gepeto”



Muitas são as técnicas e materiais para confecção de bonecos. Nelson e Beth fazem fantoches, marionetes, silhuetas de sombras, bonecos de manipulação direta e bonecos gigantes. Atualmente, os dois desenham os bonecos antes da criação com os materiais – que vão de sacolas plásticas a madeira –, mas o titeriteiro também trabalha com criação livre, pois, “é muito bom de brincar de Gepeto”.
Os bonecos de Haas levam cerca de 50 dias para serem feitos, e podem custar de R$ 150 a R$ 5 mil. Um gigante, com mais de três metros, pode chegar a R$ 12 mil. Sem dúvida, o mais importante deles foi “Zico”, um boneco com mais de 20 anos, que veste um macacão vermelho, representa uma pessoa de pele negra e tem dentes. Para Nelson, ele foi a porta de entrada para o mundo dos títeres. “Quando mostrava outro boneco, os bonequeiros me olhavam de canto. Só me aceitaram na sua ‘máfia’ quando apresentei o Zico. Nunca tinha se visto um boneco com dentes! A partir de então, passaram a me olhar com respeito e a me ensinar técnicas mais avançadas.”
“Zico”, o responsável por Haas ser aceito na ‘máfia’ dos titeriteiros

Dentro de malas na sala do casal ficam guardados, cuidadosamente, envoltos em panos, diversos títeres que eles utilizam em cena. Dois gaúchos muito distintos um do outro chamam a atenção, um deles é “Osvaldir Carlos Serjão”, que mede em torno de um metro e tem, pelo menos, uns 30 anos. O outro é “Mario Netes”, que possui tanta sutileza de detalhes quanto Osvaldir, mas com menos da metade do seu tamanho e uma particularidade: ele calça um pequeno par de botas, com esporas menores ainda. Seus bonecos de cena, Haas não vende de jeito nenhum, mas já confeccionou vários por encomenda.

Depois de prontos os bonecos encantam
pela riqueza de detalhes
“Osvaldir Carlos Serjão”



Assim como os bonecos, que necessitam das mãos de seus manipuladores para ganhar vida, Nelson e Beth também precisam da ajuda de outras mãos para realizar seus trabalhos. Entre elas, estão as de Maria Salete Herrmann, 48 anos, Mari para os íntimos. A costureira confecciona roupas desde sua adolescência, porém costura para bonecos há cinco anos, quando começou a criar para o Grupo Só Rindo. O trabalho com os bonequeiros é colaborativo. “Eles dão umas ideias, eu dou outras. Depois de pronto, se acho que falta alguma coisa, eu acrescento.” Em certa ocasião, ela assistiu o resultado de seu trabalho em cena, nas ruas do centro de Canela, sua cidade natal. “Assisti pouco, mas adorei! Agradeço pelo trabalho que tenho. É simples, mas muito gratificante”.
A maioria dos bonecos de apresentação precisa de um “mundo” ao redor para atuar e contextualizar a história, eis então que surge a artesã Karin Schenck, 41anos. Ela realiza alguns trabalhos cenográficos para o Só Rindo. Há 15 anos nesta profissão, Karin acredita que para se manter é necessário bastante criatividade e muito amor pelo que faz. No momento do espetáculo, o trabalho modifica bastante e deixa a artesã surpresa. “Nós fazemos cada peça individualmente e com todas juntas harmonizadas no palco dá uma sensação de ‘Fui eu que fiz isto? ’. É muito bom!”, exclama.

Um dos cenários confeccionados por Karin


A Origem do Teatro de Bonecos

Teatro de Bonecos, Marionetes, Títeres ou Fantoches é uma forma muito antiga de expressão artística. Alguns historiadores dizem que surgiu há mais de três mil anos e que seu uso antecipou o teatro com atores. Afirma-se também que os bonecos eram utilizados no Egito antigo, em 2.000 a. C. Os registros escritos mais remotos datam de 422 a. C. e são atribuídos a Xenofonte.
Porém, segundo Charles Nodier, escritor francês do século XIX e fervoroso admirador dos títeres, é impossível saber ao certo a origem desta arte. “Pode-se dizer que o títere mais antigo é a primeira boneca posta nas mãos de uma criança, e que o primeiro drama nasce do monólogo, melhor dizendo, do diálogo que sustenta a criança e seu boneco”. O que se sabe ao certo é que o Teatro de Bonecos exerceu desde seu início um papel significativo na história das civilizações, para comunicar ideias e animar a sociedade na qual estivesse inserido.

Quadro exposto na oficina dos bonequeiros


Haas explica a facilidade da comunicação através de bonecos: “Quando você assiste a uma peça com atores de carne e osso, por exemplo, com o Tiago Lacerda, já tem uma ideia de como ele é. Assim que ele entrar no palco, a primeira reação do espectador será comparar o que imagina dele com o que está vendo. Se ele é mais alto ou se a voz é diferente do que assistiu na TV. Com o teatro de bonecos isso não acontece. O ator dá vida ao boneco sem aparecer, é o boneco que está ali, então ninguém fará essas comparações. O boneco é para todos, da criança ao velhinho. É impossível não se identificar”.

Beth e Nelson: a coragem de buscar a liberdade


Assim como não hesitaram em largar seus empregos estáveis para seguir em busca da felicidade, o casal não hesita em acolher e ensinar quem quer que esteja interessado em aprender e perpetuar a arte bonequeira pelo mundo.  Ou quem está a fim apenas de uma boa conversa. Sabe aquele pensamento, “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios, por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”? É assim que Nelson Haas e Elisabeth Bado vivem. Rindo, cantando, dançando nos palcos da vida. Eles e seus bonecos cheios de histórias que nunca acabam. 
O casal posando com as repórteres




*Reportagem escrita em parceria com a repórter (e amiga) Jacqueline Santos, para o suplemento de cultura do jornal Babélia. 2ª edição 2013. 
Fotos: Karine Klein e Jacqueline Santos

As repórteres Jacqueline e Karine

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